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Percepção de médicos-veterinários brasileiros sobre as dietas cruas para cães e gatos

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Autor(a): Erika Figueiredo Pereira

Orientador(a): Fábio Alves Teixeira

Instituição: Universidade de São Paulo

Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

[Arquivo PDF][Acervo completo]

Índice

Resumo

A prática da alimentação crua para cães e gatos tem se tornado cada vez mais popular. No entanto, é conhecido que o fornecimento deste tipo de alimento pode implicar em riscos microbiológicos, tanto para os pets como para seus responsáveis. Diante do interesse crescente por essa prática de alimentação, seus potenciais riscos, e a importância do médico-veterinário na conscientização dos tutores, o presente estudo teve como objetivo avaliar a percepção e o conhecimento dos médicos-veterinários brasileiros em relação às dietas cruas para cães e gatos. Foi aplicado um questionário pela plataforma Google Forms para médicos-veterinários atuantes na área de pequenos animais no Brasil. O questionário foi divulgado por meio do aplicativo WhatsApp, e foi composto por 18 perguntas, as quais abordaram, além de dietas cruas para pets, questões relacionadas à formação dos profissionais, bem como conhecimentos básicos sobre nutrição de cães e gatos. Os dados foram exportados do Google Forms para uma planilha Excel e analisados por estatística descritiva. Uma parcela considerável dos entrevistados, 49,08% (134/273) afirmou que cães e gatos que consomem dietas cruas não representam risco à saúde pública. Além disso, 28,94% (79/273) dos participantes responderam que a dieta crua é mais saudável em comparação aos alimentos comerciais. Em relação aos métodos para evitar os riscos associados a microorganismos patogênicos como Salmonella spp., Campylobacter sp., Clostridium e bactérias da família Enterobacteriaceae nos alimentos crus, 31,37% (85/271) responderam que o congelamento é o método mais eficaz. O congelamento pode reduzir ou inibir a multiplicação dos microrganismos, porém não é capaz de destruí-los. Vários estudos detectaram a presença de microrganismos patogênicos em dietas cruas que podem ser transmitidas para os animais e seus tutores. Conclui-se que uma parcela considerável dos profissionais entrevistados apresenta uma visão distorcida e errônea sobre o fornecimento de dietas cruas para cães e gatos, o que pode ser considerado motivo de grande preocupação, pois quase metade mostrou desconhecer os riscos à saúde pública envolvidos. Diante desses resultados, enfatiza-se necessidade de educação e difusão de conhecimentos básicos de nutrição de cães e gatos entre médicos-veterinários.

Introdução

A prática de alimentação crua para cães e gatos, popularizada com as dietas BARF (Biologically Appropriate Raw Food), tem crescido (BILLINGHURST, 2001; LONSDALE, 2001; PERFECTLY RAWSOME, 2019).

Pesquisas conduzidas nos Estados Unidos e Austrália demostram aumento expressivo do interesse por esse tipo de dieta. Em 2008, aproximadamente 16% dos cães e 9,6% dos gatos recebiam dietas que incluíam alimentos crus. Em 2018, a percentagem aumentou para 66% e 53%, respectivamente (DODD et al., 2020). No entanto, há riscos como maiores concentrações fecais de Salmonella e Escherichia coli resistente a antimicrobianos (GROAT et al., 2022), de Clostridium perfringens e Clostridioides difficile, com probabilidade 30 vezes maior de cães que recebem alimentação crua eliminarem Salmonella spp. pelas fezes (VIEGAS et al., 2020), o que representa risco à saúde dos animais e dos humanos. Quanto aos potenciais benefícios, faltam evidências científicas substanciais para comprová-los. A motivação é oferecer alimentação mais “natural” visando melhorias à saúde, como pelagem brilhante, ganho de massa muscular e dentes mais limpos (MORELLI et al., 2019). Tais crenças podem ser explicadas pelo perfil dos tutores, os quais são menos propensos a buscar informações com médicos-veterinários, e mais inclinados a informação de outras fontes, como rede social e websites (MORGAN, 2017). Assim, estratégias assertivas para conscientizar os tutores sobre as possíveis implicações associadas ao consumo de dietas cruas são fundamentais. O presente estudo tem como objetivo avaliar a percepção e o conhecimento dos médicos-veterinários sobre dietas cruas para cães e gatos.

Material e métodos

A pesquisa foi direcionada a médicos-veterinários brasileiros atuantes na área de pequenos animais, divulgada via WhatsApp e realizada na plataforma Google Forms. O questionário compreendia 18 perguntas de múltipla escolha, algumas com a opção “outros”, permitindo que os entrevistados escrevessem suas respostas. Seis perguntas foram sobre o perfil do entrevistado, três perguntas sobre pontos básicos de nutrição e nove abordaram diferentes tipos de dietas. Os dados foram organizados em Excel para estatística descritiva.

Resultados

No total, 287 profissionais responderam ao questionário. Quatorze foram descartados pois não atuavam no Brasil ou não atuavam com cães e gatos, sendo mantidos 273 participantes. Houve ampla distribuição geográfica (Tabela 1). A maior parte dos participantes atuava em clínica geral, seguido por nutrologia e cirurgia (Tabela 2), e tinham cursado pós-graduação (Figura 1), mas durante a graduação 53,48% não frequentaram disciplina de nutrição de cães e gatos.

Tabela 1 – Distribuição dos participantes (n=273) da pesquisa de acordo com Estado de atuação
Tabela 2 – Distribuição dos participantes (n=273) da pesquisa de acordo com a área de atuação (a somatória excede 100%, pois tiveram entrevistados que responderam mais de uma especialidade)
Gráfico de pizza e de coluna mostrando resultados das perguntas

Na avaliação de conceitos básicos, ao enunciado “Você acha que para alimentação adequada de cães e gatos são macronutrientes essenciais…”, com a opção de selecionar mais de uma resposta, 93,04% dos entrevistados errou, com 70,33% considerando carboidrato como nutriente essencial (Figura 2). Em relação ao carboidrato, em torno de metade dos participantes não sabem ou consideram que esse nutriente possa ser prejudicial à saúde, principalmente dos gatos (Figura 3).

O cozimento 46,86% (172/271) e o congelamento 31,37% (85/271) foram considerados métodos eficazes para evitar riscos relacionados a patógenos nos alimentos crus. Um dos participantes enfatizou, por escrito na opção “outros”, que o congelamento só seria eficaz em temperaturas abaixo de -20oC. Alguns participantes 8,86% (24/271) acreditam que cães e gatos não possuem riscos devido às particularidades do trato gastrointestinal. Cinco entrevistados salientaram, na opção “outros”, que o risco só estava presente em alimentos de procedência duvidosa ou com preparo inadequado. Outras opiniões estão ilustradas na Figura 4. Duas respostas foram desconsideradas na estatística, pois não respondiam à questão elaborada.

Gráfico de pizza mostrando resultados das perguntas

A maioria dos participantes 42,12% (115/273) discordaram que dietas cruas são mais saudáveis, enquanto cerca de 28,94% (79/273) concordaram. Outros 28,94% (79/273) afirmam não ter conhecimento (Figura 5).

A maioria 86,45% (236/273) acredita que existe risco de cães e gatos que consomem dietas cruas adoecerem. A pesquisa também revelou uma divisão em relação ao risco à saúde pública, com 50,92% (139/273) acreditando que há risco e 49,08% (134/273) discordando (Figura 6).

Discussão

O questionário foi elaborado na busca por entender o quanto os veterinários brasileiros conhecem de nutrição de cães e gatos, mais especificamente sobre alimentação crua. Pode-se observar que a elevada taxa de erro nas perguntas de nutrição básica revela falta de conhecimento sobre o assunto, visto que mais da metade dos participantes selecionou minerais e vitaminas [micronutrientes (WEDEKIND et al., 2010)] como macronutrientes essenciais; carboidrato e fibra [nutrientes não essenciais (GROSS et al., 2010)] como essenciais ou simplesmente não tinham opinião. Acrescentar as perguntas de conceitos básicos no começo do questionário é interessante para entender qual público está participando. Os resultados mostram que conhecimentos básicos em nutrição não estão sendo adequadamente difundidos, mesmo sendo consenso que a avaliação nutricional é considerada quinto parâmetro vital e sua aplicação é essencial para prevenção e manejo de doenças (FREEMAN et al., 2011).

Apesar de existirem evidências concretas de que a inclusão de carboidrato na alimentação de cães e gatos não é prejudicial (RANKOVIC; ADOLPHE; VERBRUGGHE, 2019; VERBRUGGHE; HESTA, 2017) e os animais conseguem utilizá-lo muito bem (KIENZLE, 1993; DE-OLIVEIRA et al., 2008; AXELSSON et al., 2013; CARCIOFI et al, 2008), uma parcela significativa dos participantes da pesquisa o considera nocivo, principalmente aos felinos. Essa percepção pode estar relacionada a mitos propagados na nutrição.

Quanto aos riscos, as principais preocupações foram a transmissão de patógenos aos animais e deficiências nutricionais. Vários estudos detectaram a presença de microrganismos patogênicos como Enterobacteriaceae, Clostridium perfringens, Salmonella e Campylobacter em dietas cruas (BOJANIĆ et al., 2016; HELLGREN et al., 2019; VIEGAS et al., 2020; GROAT et al., 2022; RAMOS et al., 2022), que podem ser transmitidas para os animais e seus tutores. Para os humanos, a transmissão pode ocorrer por contato direto com os alimentos crus contaminados ou com as fezes dos animais que consumiram as dietas cruas (FREEMAN et al., 2013). Além disso, na literatura há descrição de casos de polirradiculoneurite aguda em cães (KIM et al., 2021), surto de tuberculose em felinos (O’HALLORAN et al., 2020), salmonelose septicêmica em gatos (STIVER et al., 2003) e brucelose em cão (VAN DIJK et al., 2018) que recebiam dieta crua.

O congelamento e o cozimento foram considerados os métodos mais eficazes para evitar os riscos associados aos patógenos presentes nos alimentos crus. Embora o congelamento possa reduzir ou inibir a multiplicação dos microrganismos, não é capaz de destruí-los. Por outro lado, métodos de aquecimento são eficazes na destruição dos microrganismos (FORSYTHE, 2013). É relevante ressaltar que, mesmo em estabelecimentos que adotam boas práticas de fabricação, a contaminação pode ocorrer desde o abate e processamento da carne até o comércio varejista, e até mesmo durante o preparo pelo consumidor (FORSYTHE, 2013). Por esse motivo, a Organização Mundial de Saúde (2021) não recomenda o consumo de carne crua ou malcozida para humanos, mesmo submetidos a congelamento.

A maioria dos entrevistados expressou preocupação com a possibilidade de cães e gatos adoecerem com consumo de dietas cruas, sugerindo conscientização sobre potenciais perigos aos animais. No geral, a prevalência de doenças causadas por enterobactérias em cães e gatos é baixa, e está associada a diarreias auto- limitantes. No entanto, sabe-se que esses microorganismos são eliminados nas fezes, mesmo quando assintomáticos (REIMSCHUESSEL et al., 2017; MARKS et al., 2011).

A pesquisa demonstrou divisão de opiniões em relação ao risco à saúde pública, indicando desinformação sobre um aspecto relevante: a possível transmissão de patógenos dos animais que consomem dietas cruas para os humanos. Diversos estudos demostram riscos à saúde pública (PITOUT et al., 2003; SEALEY et al., 2022; CAMPAGNOLO et al., 2018; NILSSON, 2015; CLARK et al., 2001), como a eliminação de E. coli resistente (MOUNSEY et al., 2022), Enterobactérias produtoras de beta-lactamase de espectro ampliado (BAEDE et al., 2017), detecção de E. coli resistente a cefalosporinas de terceira geração e amoxicilina com clavulanato (SCHMIDT et al., 2015) nas fezes de animais que consumiam dietas cruas.

Quando se trata dos benefícios, faltam evidências científicas. Estudos determinaram maior digestibilidade de dietas cruas para felinos selvagens (CRISSEY et al., 1997; VESTER et al., 2010). No entanto, não houve diferença na digestibilidade entre dietas cruas e cozidas em felinos domésticos (KERR et al., 2012). Além disso, embora o consumo de ossos crus possa auxiliar na remoção de cálculos dentários, há riscos envolvidos como fraturas dentárias, lesões orais, obstruções e perfurações intestinais (MARX et al., 2016; PINTO et al., 2020; STEENKAMP; GORREL, 1999; VERSTRAETE et al., 1996).

Um estudo sobre as condições dentárias de cães africanos selvagens encontrou baixa prevalência de cálculo dentário (2 em 29 crânios), mas alta prevalência de doença periodontal e dentes fraturados, 41% e 48% dos crânios examinados, respectivamente (STEENKAMP; GORREL, 1999). Resultados semelhantes foram observados em gatos selvagens, onde cálculos dentários eram raros, mas lesões no palato duro, periodontite de gravidade moderada a avançada, e perda dentária eram comuns (VERSTRAETE et al., 1996). Portanto, diante dessas evidências, não há benefícios comprovados que justifiquem assumir os riscos para saúde pública e dos pets associados às dietas cruas.

Conclusão

Os resultados identificaram uma lacuna no conhecimento dos entrevistados sobre dietas cruas, especialmente no que diz respeito aos seus reais riscos e benefícios, incluindo aspectos relacionados à saúde pública. Destaca-se, portanto, a importância da educação contínua e atualização dos conhecimentos em nutrição para cães e gatos por parte dos médicos-veterinários.

Referências bibliográficas

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