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Osteopenia incomum de ossos do crânio secundária a hipovitaminose D em cão – Relato de caso

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Autor(a): Ricardo Henrique Miziara

Orientador(a): Vanessa Uemura da Fonseca

Instituição: Autônomo – Clínica Concept (Santo André\/SP)

Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

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Índice

Resumo

A vitamina D e o paratormônio (PTH) apresentam papel essencial na homeostasia do cálcio na garantia de níveis séricos adequados deste elemento e manutenção de um estoque adequado e funcional nos ossos. A deficiência crônica de vitamina D pode desencadear aumento compensatório de PTH para manutenção da calcemia, desencadeando o hiperparatireoidismo nutricional secundário. O presente relato de caso apresenta um quadro de hipovitaminose D crônica secundária ao não aporte adequado em dieta caseira associado à osteopenia de ossos do crânio sem alteração renal existente. A redução expressiva da densidade óssea de ossos do crânio e substituição por tecido fibroelástico ocorre comumente em pacientes que apresentam doença renal crônica sob influência da hiperfosfatemia e hipovitaminose D frente a deficiência na conversão da 25- hidroxivitamina D em sua forma biologicamente ativa 1,25-dihidroxivitamina D. Dessa forma, este relato trata de um quadro incomum de hiperparatireoidismo nutricional secundário. Conclui-se, portanto, que a hipovitaminose D proveniente da deficiência de vitamina D na dieta associada à um hiperparatireoidismo secundário pode ocasionar osteopenia de ossos do crânio através da osteodistrofia fibrosa, gerando alterações que comprometem a qualidade de vida do animal.

Palavras-chave: Mandíbula de borracha. Hiperparatireoidismo. Vitamina D. Paratormônio. Osteopenia

Introdução

O paratormônio (PTH) e a vitamina D são hormônios de fundamental importância para a manutenção adequada da homeostasia óssea e do metabolismo mineral, envolvendo principalmente a regulação do cálcio e fósforo séricos (PARKER et al., 2017; PEACOCK, 2010; ZAFALON et al., 2020a).

O paratormônio é sintetizado e secretado pelas paratireoides, as quais são extremamente sensíveis a mínimas variações séricas de cálcio iônico (FELDMAN, 2015). Este hormônio possui função direta e constante na manutenção da calcemia através da participação na absorção intestinal de cálcio, reabsorção óssea e reabsorção de cálcio nos rins (PEACOCK, 2010; ZAFALON et al., 2020b).

Já a vitamina D apresenta funções multissistêmicas, destacando-se também a manutenção de níveis séricos e garantia dos estoques de cálcio através reabsorção intestinal deste mineral. Ao contrário do que ocorre na espécie humana, os cães são incapazes de sintetizar vitamina D a partir do colesterol mediante à exposição aos raios solares (ZAFALON et al., 2020a). Ademais, a espécie canina é capaz de utilizar tanto a vitamina D3 (colecalciferol) proveniente do tecido animal quanto vitamina D2 (ergocalciferol) de origem vegetal e fúngica (PARKER et al., 2017). Primeiramente o colecalciferol e/ou o ergosterol provenientes da absorção intestinal são convertidas em 25-hidroxivitamina D (calcidiol) no fígado pela enzima 25-hidroxilase, sendo armazenada principalmente no tecido adiposo. Nos rins, a 25-hidroxivitamina D sofre uma nova hidroxilação pela enzima 1α-hidroxilase, onde finalmente se torna a vitamina D biologicamente ativa chamada 1,25- dihidroxivitamina D, também denominada calcitriol (DITTMER; THOMPSON, 2011; ZAFALON et al., 2020b).

A deficiência de vitamina D pode ter origem na falta de aporte nutricional deste elemento, síndrome de má absorção intestinal em enfermidades gastrointestinais ou em redução de sua conversão para forma biologicamente ativa nos rins em casos de doença renal crônica (ALLENSPACH et al., 2017; PARKER et al., 2017; TAL et al., 2018).

Dietas deficientes em vitamina D e/ou cálcio ou ricas em fósforo tem por consequência o estímulo à síntese aumentada de PTH como um mecanismo compensatório em processo caracterizado como hiperparatireoidismo nutricional secundário (ZAFALON et al., 2020b). O aumento crônico e significativo deste hormônio apresenta efeitos tóxicos no organismo e é responsável por diversos efeitos adversos sistêmicos. A principal consequência é a depleção de cálcio dos ossos através do estímulo dos osteoclastos que pode ocasionar manifestações clínicas como claudicação ou até mesmo fraturas de ossos longos (SCHENK; CHEW, 2012; FELDMAN, 2015).

A osteopenia nos ossos do crânio com perda da lâmina dura do dente e do osso alveolar estão comumente relacionadas ao hiperparatireoidismo secundário renal presente em cães e gatos com doença renal crônica associada (DAVIS, E. M. 2015). Este processo é caracterizado por níveis de PTH elevados devido à hiperfosfatemia secundária à redução da taxa de filtração glomerular e à deficiência de vitamina D metabolicamente ativa (calcitriol), desencadeando a osteodistrofia renal através da desmineralização de ossos cranianos e substituição por tecido conjuntivo fibroso, gerando uma elasticidade e maleabilidade ao mover a mandíbula e, portanto, sendo referida como “mandíbula de borracha”. A preferência pela reabsorção dos ossos da face ainda não foi elucidada (DAVIS, E. M. 2015; CHACAR et al., 2020).

Relato de caso

Uma cadela da raça Shih Tzu com 6 anos de idade foi encaminhada para avaliação devido quadro de osteopenia mandibular e maxilar, sob a suspeita de alterações hormonais justificarem o quadro. Paciente foi atendido por colega com a queixa de letargia e dificuldade mastigatória (tutora referia ingestão do alimento sem mastigação). Ademais, tutores referiam projeção e manutenção da língua fora da cavidade oral havia cerca de 4 meses. Negavam qualquer manifestação ortopédica.

Após o paciente apresentar urolitíase vesical com 2 anos de idade resolveram suspender a dieta comercial e iniciar dieta caseira sem orientação profissional. A base da dieta relatada era de arroz integral, variedade de legumes e uma proteína (frango ou carne bovina). Nunca houve suplementação de vitaminas, macro e/ou microminerais.

Em uma primeira avaliação, paciente pesava 8,0 Kg e apresentava escore de condição corporal (ECC) 6/9 e escore de massa magra (EMM) 2/3. Devido maleabilidade de maxila e mandíbula ao exame físico foram iniciados exames complementares para melhor elucidação do quadro. Em hemograma e bioquímica sérica não foram observadas alterações. Apresentava valores de cálcio total 10,7 mg/dl (referência 8 – 12 mg/dl), fósforo 4,85 mg/dl (referência 2,6 – 6,2 mg/dl), ureia 30,64 mg/dl (referência 15 – 66 mg/dl), creatinina 0,59 (referência 0,5 – 1,5 mg/dl). Concomitantemente foi realizada radiografia de crânio e constatada importante adelgaçamento das corticais e redução da densidade das estruturas ósseas locais, havendo perda da lâmina dura e do osso alveolar de mandíbula e maxila, descontinuidade óssea em corpo mandibular e irregularidade das raízes dentárias bilateralmente (figura 1). Realizada também radiografia de fêmur e tíbia não evidenciando alterações de densidade e morfologia óssea.

Radiografia de crânio em projeção oblíqua direita (a) e dorsoventral (b) evidenciando importante redução da densidade das estruturas ósseas com perda da lâmina dura e osso alveolar e irregularidade das raízes dentárias em mandíbula e maxila
Figura 1. Radiografia de crânio em projeção oblíqua direita (a) e dorsoventral (b) evidenciando importante redução da densidade das estruturas ósseas com perda da lâmina dura e osso alveolar e irregularidade das raízes dentárias em mandíbula e maxila

Não apresentou alterações em palpação de coluna toracolombar, sacral e de membros pélvicos. Solicitada ultrassonografia abdominal a qual não constatou grandes alterações dignas de menção. Apresentava pequeno nódulo ecogênico incidental e homogêneo em adrenal direita medindo cerca de 0,56 x 0,75 cm de comprimento em maiores eixos, mas aparentemente sem correlação com o quadro. Em ultrassonografia cervical, paciente apresentava as duas paratireoides caudais aumentadas. As paratireoides direitas (cranial e caudal) mediram cerca de 0,25cm e 0,50cm de comprimento, respectivamente, enquanto as esquerdas (cranial e caudal) mediram cerca de 0,23cm e 0,57cm de comprimento, respectivamente (referência: até 0,33cm de comprimento). As quatro paratireoides mantinham contornos, ecotextura e ecogenicidade sem alterações.

Ultrassonografia cervical evidenciando aumento de paratireoide caudal esquerda, medindo 0,57 cm em seu maior eixo (seta vermelha)
Figura 2. Ultrassonografia cervical evidenciando aumento de paratireoide caudal esquerda, medindo 0,57 cm em seu maior eixo (seta vermelha)

Repetida dosagem de cálcio total e fósforo e realizada dosagem do cálcio iônico, vitamina D e PTH concomitante (tabela 1).

Resultado da dosagem de cálcio total, cálcio iônico, fósforo, PTH e vitamina D
Tabela 1. Resultado da dosagem de cálcio total, cálcio iônico, fósforo, PTH e vitamina D

Discussão

O relato apresentado tem como ponto chave a grave osteopenia de maxila e mandíbula. Com base neste achado e manifestações clínicas como dificuldade de mastigação e projeção da língua para fora da cavidade oral e se associarmos o fato do animal apresentar uma dieta desbalanceada há cerca de 4 anos com níveis insuficientes de vitamina D e com dosagem sérica de PTH elevada podemos concluir que se trata de um processo desencadeado pela deficiência de vitamina D na dieta. Esta deficiência de provável caráter crônico possivelmente induziu o aumento do PTH como mecanismo compensatório para manter os níveis de cálcio no meio extracelular. Cronicamente, a ação do PTH no tecido ósseo desencadeou uma osteodistrofia fibrosa, gerando substituição da matriz óssea por tecido conjuntivo fibroso através da ativação da reabsorção osteoclástica, ocasionando o achado radiográfico de redução drástica da densidade óssea em ossos do crânio neste animal, caracterizando um diagnóstico presuntivo de hiperparatireoidismo secundário nutricional com um quadro osteopênico incomum uma vez que esta apresentação ocorre geralmente em doentes renais crônicos (DAVIS, E. M. 2015; CHACAR et al., 2020). A ideia de hiperparatireoidismo secundário nutricional é reforçada pelo aumento das glândulas paratireoides caudais em ultrassonografia cervical deste paciente associada a valores de cálcio total dentro da normalidade. Em humanos há divergências e diferentes opiniões sobre os pontos de corte que caracterizam a vitamina D como suficiente ou insuficiente. Hoje para diversos autores a ideia de níveis suficientes de vitamina D seria quando há otimização na absorção intestinal de cálcio, níveis minimizados de PTH e mínima necessidade de reabsorção óssea (WEIDNER; VERBRUGGHE, 2017). No caso escrito acima vemos um claro aumento de PTH em comparação a um baixo valor de vitamina D independentemente de sua classificação em suficiente ou insuficiente. Essa clara discrepância já comprova a deficiência de vitamina D e a necessidade de níveis mais elevados de PTH para manter a calcemia dentro de valores normais para a espécie. Em caso de hipocalcemia a resposta fisiológica seria a elevação do paratormômio e consequente estímulo para síntese de vitamina D biologicamente ativa (calcitriol) no intuito de reabsorver mais cálcio no intestino (ZAFALON et al., 2020b). Como neste caso descrito há baixa concentração sérica de vitamina D mesmo com elevado PTH podemos concluir que há notadamente uma deficiência aporte nutricional de vitamina D cronicamente. Como consequência há aumento mais acentuado da atividade osteoclástica óssea provocada pelo PTH como único principal meio de obtenção de cálcio.

Os resultados obtidos nos exames deste paciente relatado se assemelham a um único caso descrito na literatura de osteopenia em ossos do crânio devido hipovitaminose D associada à dieta deficiente em vitamina D e cálcio em uma Rottweiler de 6 anos de idade (DE FORNEL-THIBAUD et al., 2007). Contudo, neste caso houve aumento importante de volume facial devido à osteodistrofia fibrosa, o que não foi observado em nosso relato talvez pela maior gravidade da deficiência de vitamina no caso de De Fornel-Thibaud et al (2007), sendo a concentração de vitamina D <0,7 nmol/L (intervalo de referência apresentado de 19 a 90 nmol/L) e alta concentração séricas do PTH de 104,6 pmol/L (intervalo de referência apresentado de 2 a 13 pmol/L).

Em outro caso de hiperparatireoidismo secundário nutricional descrito por Tal et al (2018) as manifestações clínicas foram as comumente relatadas em pacientes com hiperparatireoismo secundário nutricional como dor em coluna toracolombar e claudicação. Se tratava de um Schanauzer gigante de 6 meses de idade que utilizava uma dieta caseira desbalanceada e consequente hipovitaminose D, apresentando claudicação e dor em coluna toracolombar com alterações ósseas como adelgaçamento de cortical, redução da densidade óssea e alterações morfológicas das vértebras.

Nos chama atenção o fato de tanto o paciente deste relato quanto o relatado por De Fornel-Thibaud et al (2007) apresentarem os mesmos 6 anos de idade no momento do diagnóstico e mesma manifestação incomum de osteopenia em ossos do crânio enquanto no caso relatado por Tal et al (2018) o paciente apresentava 6 meses de idade e alterações em vértebras e ossos longos, mais comumente relatados em hiperparatireoidismo nutricional secundário. Isso nos leva a supor que pode haver diferença nos sítios de reabsorção óssea frente deficiência de vitamina D em diferentes idades.

Conclusão

O relato apresentado demonstra a possibilidade de osteodistrofia em ossos do crânio não apenas doentes renais crônicos, mas também em casos de hiperparatireoidismo nutricional secundário em cães adultos. Dessa forma, podemos salientar que há grande importância da manutenção de uma dieta equilibrada e bem suplementada não apenas em filhotes em crescimento, mas também em adultos. A suplementação da dieta com vitamina D se torna essencial em todas as fases da vida do cão.

Referências bibliográficas

ALLENSPACH, K. et al. Hypovitaminosis D is associated with negative outcome in dogs with protein losing enteropathy: A retrospective study of 43 cases. BMC Veterinary Research, v. 13, n. 1, 2017.

CHACAR, F. C. et al. Vitamin D metabolism and its role in mineral and bone disorders in chronic kidney disease in humans, dogs and cats. Metabolites, v. 10, n. 12, p. 1-14, 2020.

DAVIS, E. M. Oral Manifestations of Chronic Kidney Disease and Renal Secondary Hyperparathyroidism: A Comparative Review. Journal of veterinary dentistry, v. 32, n. 2, p. 87-98, 2015.

DE FORNEL-THIBAUD, P. et al. Unusual Case of Osteopenia Associated With Nutritional Calcium and Vitamin D Deficiency in an Adult Dog. J Am Anim Hosp Assoc. v. 43, p. 52-60, 2007.

DITTMER, K. E.; THOMPSON, K. G. Vitamin d metabolism and rickets in domestic animals: A review. Veterinary Pathology. v. 48, n. 2, p 389-407, 2011.

FELDNMAN, E. C. Hypercalcemia and Primary Hyperparathyroidism. In: FELDNMAN, E. C. Canine and Feline Endocrinology. 4. ed. St. Louis: Elsevier, 2015. p. 579 – 624

PARKER, V. J. et al. Association of Vitamin D Metabolites with Parathyroid Hormone, Fibroblast Growth Factor-23, Calcium, and Phosphorus in Dogs with Various Stages of Chronic Kidney Disease. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 31, n. 3, p. 791-798, 2017.

PEACOCK, M. Calcium metabolism in health and disease. Clinical Journal of the American Society of Nephrology. v. 5, p. 23-30, 2010.

 

SCHENK P. A.; CHEW, D. J. Investigation of hypercalcaemia and hypocalcaemia. In MOONEY, C. T.; PETERSON, M. E. BSAVA manual of canine and feline endocrinology. 4. ed. Gloucester: BSAVA, 2012. p 221.

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WEIDNER, N.; VERBRUGGHE, A. Current knowledge of vitamin D in dogs. Critical Reviews in Food Science and Nutrition, v. 57, n. 18, p. 3850–3859, 2017.

ZAFALON, R. V. A. et al. Vitamin D metabolism in dogs and cats and its relation to diseases not associated with bone metabolism. Journal of Animal Physiology and Animal Nutrition. v. 104, p. 322-342, 2020a.

ZAFALON, R. V. A. et al. The role of vitamin D in small animal bone metabolism.

Metabolites. v. 10, n. 12, 2020b.

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