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Manejo Clínico e Nutricional da Lipidose Hepática Felina

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Autor(a): Laís Oyama Cotrim Lima

Orientador(a): Márcio Antonio Brunetto

Instituição: FMVZ USP

Trabalho classificado na 9ª Edição (2023) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

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Índice

Resumo

A lipidose hepática felina é um distúrbio de parênquima hepático comum no gato doméstico e na rotina clínica, caracterizado pelo acúmulo hepático de triglicerídeos. Sua ocorrência está relacionada a períodos de hiporexia ou anorexia e perda de peso, sobretudo em gatos obesos ou em sobrepeso e, sua fisiopatogenia ainda não foi completamente elucidada. As manifestações clínicas são variáveis e incluem anorexia, sinais gastrointestinais e icterícia. Seu tratamento é sintomático, associado ao suporte nutricional intensivo, visando a correção do balanço energético negativo para reversão do quadro. A presente revisão tem como objetivo oferecer um panorama geral das estratégias descritas para o tratamento e manejo nutricional dos animais acometidos pela lipidose hepática felina.

Introdução

A lipidose hepática felina é um distúrbio hepático comum em gatos domésticos, caracterizado pelo acúmulo excessivo de triglicerídeos em hepatócitos e consequente colestase intra-hepática (RECHE JUNIOR et al., 2015).

Embora sua patogênese não esteja completamente elucidada, sabe-se que sua ocorrência está associada a períodos de balanço energético negativo, sobretudo em animais em sobrepeso ou obesos. Nesses indivíduos, a rápida mobilização dos depósitos de gordura corporal ― possivelmente associada a processos de lipogênese de novo e à deficiência de nutrientes associados ao metabolismo lipídico ― pode surpassar a capacidade hepática de metabolização de lipídeos, levando ao acúmulo de triglicérides em hepatócitos e subsequente aparecimento do quadro (RECHE JUNIOR et al., 2015; VALTOLINA et al., 2019; VERBRUGGHE; BAKOVIC, 2013).

A lipidose hepática felina é desencadeada por um período de hiporexia ou anorexia, podendo ou não haver uma doença de base e associada à diminuição da ingestão calórica (CENTER, 2005). No caso de animais sem doença de base ― referida por alguns autores como “lipidose idiopática” ―, a ocorrência de hiporexia ou anorexia e subsequente aparecimento do quadro de lipidose são frequentemente associados a eventos estressantes (VALTOLINA; FAVIER, 2017).

As manifestações clínicas podem variar, sendo frequentes a anorexia, prostração, êmese, diarreia ou constipação e icterícia (CENTER, 1994; KUZI et al., 2017). Quanto aos exames laboratoriais, é comum o aumento de atividade de enzimas hepáticas ― sobretudo ALT, AST e FA ―, diminuição de nitrogênio ureico no sangue, hiperbilirrubinemia, distúrbios de coagulação, anormalidades eletrolíticas e aumento de β-hidroxibutirato sérico; exames hematológicos, em geral, refletem a causa de base; à ultrassonografia abdominal, é possível identificar hepatomegalia com hiperecogenicidade difusa (VALTOLINA; FAVIER, 2017; CENTER, 2005; WEBB, 2018).

O tratamento da lipidose hepática é associado ao suporte nutricional intensivo, que deve ser iniciado o quanto antes, com o objetivo de reverter o balanço energético negativo, além de medidas sintomáticas e de suporte que visam a estabilização do paciente (CENTER, 2005; RECHE JUNIOR et al., 2015).

Desenvolvimento

Diagnóstico

 O diagnóstico presuntivo da lipidose hepática felina pode ser feito com base no histórico, manifestações clínicas, exames laboratoriais e de imagem ― sobretudo, a ultrassonografia abdominal. Já o diagnóstico definitivo é realizado por histopatologia ou citologia, que demonstra o acúmulo de triglicerídeos em hepatócitos (ARMSTRONG; BLANCHARD, 2009; CENTER, 2005; VALTOLINA; FAVIER, 2017; RECHE JUNIOR et al., 2015).

Suporte nutricional

 O quadro de lipidose hepática está frequentemente associado à anorexia, e, portanto, não é possível utilizar a alimentação espontânea via oral como única via de nutrição para a maioria dos pacientes. Desta forma, o suporte nutricional enteral deve ser considerado.

Embora alguns estudos tenham realizado a alimentação forçada via oral como forma de manejo nutricional, deve-se considerar que tal prática pode induzir o aparecimento de aversão ao alimento e deve, portanto, ser evitada. Entre as opções de suporte nutricional entérico comumente empregadas na rotina clínica, estão a sonda nasoesofágica, esofágica e gástrica. O suporte nutricional deve ser mantido até que a alimentação por via oral de forma voluntária tenha sido reestabelecida (PEREA, 2008; GAJANAIAKE, 2015; CHAN, 2020; TAYLOR, 2022).

A sonda nasoesofágica apresenta menor calibre em relação às demais sondas, limita a passagem apenas de alimentos líquidos e costuma ser indicada par animais que necessitem de curtos períodos de suporte (PEREA, 2008; WADDEL et al., 1998.). O procedimento de colocação é ambulatorial e não requer sedação e, o posicionamento deve ser confirmado por radiografia torácica. Por não envolver a necessidade de anestesia geral, a sonda nasoesofágica pode ser considerada para animais com elevado risco anestésico. Como pontos possivelmente negativos da técnica, estão a menor disponibilidade de alimentos compatíveis com o menor calibre da sonda; a contraindicação em animais com afecções nasais ou de esôfago, e em pacientes com alto risco de aspiração (vômitos, prostração excessiva, reflexo de deglutição diminuído); o risco mais elevado de retirada pelo animal; e o curto período para sua utilização (GAJANAIAKE, 2015; CHAN, 2020).

A sonda esofágica apresenta-se como uma alternativa de maior calibre, que permite a passagem de alimentos pastosos ou mesmo alimentos secos amolecidos em água e triturados, o que aumenta as opções de produtos a oferecer, e pode ser mantida por períodos prolongados; por essas características, muitas vezes é a via de escolha para os pacientes em lipidose hepática. A esofagostomia para colocação da sonda deve ser realizada sob anestesia geral, com incisão cervical para passagem do tubo. O posicionamento deve ser confirmado por radiografia torácica. Suas desvantagens incluem a contraindicação em pacientes de elevado risco anestésico e com afecções esofágicas; e riscos de complicações pós-cirúrgicas, como infecções no local da incisão (CHAN, 2020; EIRMANN, 2015; FINK, 2014).

A sonda gástrica, apresenta um calibre que permite a passagem de alimentos pastosos ou triturados e pode ser mantida por longos períodos. Sua colocação requer anestesia geral e pode ser realizada com ou sem o auxílio de endoscopia. Quanto às desvantagens, a sonda gástrica é contraindicada em pacientes de elevado risco anestésico ou cirúrgico e, afecções gastrointestinais graves; e há risco de complicações pós-cirúrgicas (TAYLOR, 2022; GAJANAYAKE; CHAN, 2015; PEREA, 2008.) É recomendada, sobretudo, em animais que necessitem de suporte nutricional por períodos mais longos, e cujo acesso ao esôfago esteja comprometido (TAYLOR, 2022).

Um alimento comercial específico para o manejo da lipidose hepática felina ainda não está disponível. Baseando-se em estudos com gatos obesos em perda de peso e diabéticos, Center (2005) propõe uma dieta com inclusão de 33 a 45% de proteínas e ressalta que, desde que os requerimentos de proteína sejam atendidos, uma dieta com alta inclusão de lipídeos (de 44 a 66% da EM) pode ser utilizada sem agravar o acúmulo de triglicerídeos hepáticos. De acordo com Valtolina e Favier (2017), uma dieta para lipidose hepática felina deve apresentar alta inclusão de proteínas (de 30 a 40% da EM), moderada inclusão de lipídeos (cerca de 50% da EM) e baixa inclusão de carboidratos (cerca de 20% da EM.)

Independentemente da via de suporte nutricional e alimento escolhidos, deve-se realizar a reintrodução alimentar de forma gradual, de forma a evitar o aparecimento da síndrome de realimentação; recomenda-se iniciar com cerca de 20% da necessidade energética de repouso (NER, calculada como 70 x PC^0,75) e aumentar a quantidade de alimento de forma gradual ao longo de 4 a 10 dias (CHAN, 2015; TAYLOR, 2022).

Suporte farmacológico

 Atualmente, não existe um protocolo para abordagem farmacológica da lipidose hepática felina e preconiza-se o tratamento sintomático e de suporte que visa a estabilização do paciente, aliado ao suporte nutricional para resolução do balanço energético negativo. A utilização de antieméticos, analgésicos, estimulantes de apetite e demais fármacos deve ser realizada quando necessário para o quadro do animal. No caso de animais com comorbidades, deve-se tratar a causa base (CENTER, 2005; VALTOLINA; FAVIER, 2017).

HAAKER et al. (2020) avaliaram in vitro o potencial de oito fármacos para o tratamento da lipidose hepática. Destes, dois apresentaram capacidade de diminuir o acúmulo de triglicérides em hepatócitos ― o fármaco T-863, inibidor da enzima diacilglicerol aciltransferase-1 (DGAT1); e o fármaco 5-aminoimidazol-4- carboxamida 1-β-D-ribofuranoside (AICAR), que age como análogo da adenosina monofosfato (AMP). No entanto, estudos in vivo com essas substâncias ainda não foram realizados.

Suplementação nutricional

 A suplementação nutricional para gatos com lipidose hepática é debatida devido às aparentes deficiências séricas neste quadro, e/ou possíveis efeitos destes suplementos no metabolismo lipídico. No entanto, as evidências de benefícios ainda são limitadas e, protocolos específicos de suplementação estão indisponíveis. Dentre as diversas substâncias propostas para suplementação na lipidose hepática felina, a L-carnitina recebe o maior destaque entre os autores (ARMSTRONG, 2009; CENTER, 2005; VALTOLINA; FAVIER, 2017).

A suplementação de L-carnitina para lipidose hepática felina foi inicialmente sugerida com base em estudos em gatos obesos, que demonstravam possível aumento da oxidação de ácidos graxos nos indivíduos suplementados (CENTER, 2000). Foi proposto que esse efeito poderia ser benéfico para quadros de lipidose hepática felina, por possivelmente diminuir o acúmulo hepático de triglicerídeos.

Blanchard (2002) avaliou os efeitos da suplementação com 1000 mg/kg de L-carnitina durante indução de obesidade anterior ao aparecimento de lipidose hepática. Ele demonstrou possível efeito protetivo contra a cetose durante a lipidose hepática. No entanto, é importante notar que esse estudo avaliou a suplementação com L-carnitina realizada previamente à ocorrência de lipidose induzida, e não o papel da suplementação em animais que já apresentavam a condição.

Ibrahim (2003) avaliou os efeitos da suplementação com L-carnitina e taurina em gatos durante o ganho de peso até obesidade e, subsequentemente, durante rápida perda de peso, uma situação que apresenta risco de desenvolvimento de lipidose hepática. A suplementação com L-carnitina não diminuiu o acúmulo hepático de triglicerídeos durante a perda de peso, mas possivelmente aumentou a oxidação hepática de determinados ácidos graxos. Adicionalmente, os animais suplementados com carnitina apresentaram aumento de corpos cetônicos, um resultado que contrapõe o encontrado por Blanchard (2002). O grupo suplementado com L-carnitina apresentou maior taxa de perda de peso, no entanto, todos os grupos perderam mais massa magra que gordura.

Embora a suplementação com L-carnitina seja a mais proposta para lipidose hepática, os dados publicados ainda são escassos e não existem evidências suficientes de benefícios desta suplementação para o quadro.

Considerações finais

A lipidose hepática felina apresenta alta relevância para a clínica de pequenos animais, sendo uma afecção hepática comum em gatos domésticos. Trata-se de um risco importante a se considerar para felinos que apresentam condições que possam predispor à anorexia ou hiporexia, sobretudo aqueles que apresentam sobrepeso ou obesidade.

O suporte nutricional do paciente constitui a parte mais importante do tratamento e, deve ser introduzido o mais cedo possível. Demais tratamentos devem ser sintomáticos e de suporte, visando a estabilização do quadro, o bem- estar animal, e o manejo e tratamento das causas de base, se existirem.

Adicionalmente, evidencia-se a necessidade de mais estudos sobre essa afecção ainda não totalmente compreendida, incluindo novas investigações quanto aos mecanismos fisiopatológicos da lipidose hepática felina, avaliação de padrões de dieta para o manejo nutricional da doença e de suplementação nutricional para auxílio do tratamento.

Referências bibliográficas

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