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Diabetes mellitus secundária a pancreatite por intoxicação acidental por cafeína em cão

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Autor(a): Maria Eduarda Gonçalves Tozato

Orientador(a): Aulus Carciofi

Instituição: FCAV UNESP

Trabalho classificado na 9ª Edição (2023) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

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Índice

Resumo

Uma cachorra pug, fêmea, 7 anos, castrada, após o consumo acidental de “termogênico” à base de cafeína, triglicerídeos de cadeia média (TCM), chá verde e outros compostos apresentou intensa agitação e recorrentes episódios de vômito e diarreia. Na emergência, foi detectado aumento de pressão arterial, taquicardia e taquipneia. Foram administradas medicações para cessar o vômito e após 1 hora o animal apresentou angústia respiratória sendo necessária a sedação e intubação. Em oito dias, animal desenvolveu edema pancreático e 82 dias após a exposição acidental foi diagnosticado diabetes mellitus. A cafeína é um alcaloide de metilxantina, a intoxicação aguda afeta o sistema cardiovascular, pulmonar, neurológico, gastrointestinal. A indiscrição alimentar pode estar relacionada ao desenvolvimento de pancreatite aguda, causando comprometimento da função endócrina pancreática, o que resultou na diabetes melittus.

Palavras-chave:         Cafeína,          endocrinopatia,           Intolerância     alimentar, envenenamento

Introdução

Intolerância alimentar refere-se a qualquer resposta fisiológica anormal a um alimento ou aditivo. Aproximadamente 80% da população consome diariamente um produto contendo cafeína (Ogawa e Ueki, 2007), especialmente por seus efeitos estimulantes (Ludwig et al., 2014). Casos de acidentes com superexposição e mortalidade já foram relatados em cães (Fredholm, 2011).

A cafeína (1,3,7-trimetilxantina) é um alcaloide xantina de sabor amargo (Eteng, 1997). Este composto pode ser facilmente obtido e incorporado em alimentos atrativos para os animais, como produtos de grãos de café/cacau, produtos de chocolate, medicamentos, bebidas estimulantes, comprimidos e suplementos estimulantes (Tawde et al., 2012). Assim, podem ser ingeridos em dose tóxica de cafeína provocando a síndrome clínica (Craig, 2019). Não há relatos de uso intencional de cafeína com efeito letal, mas existem casos de acidentes com superexposição à cafeína e subsequente mortalidade em cães (Lee, 2020). Apesar de indiscrição alimentar e envenenamento serem relativamente comuns na casuística veterinária, a ingestão acidental com termogênico contendo cafeína em cães não foi encontrada na literatura, sendo o objeto do presente relato.

Intolerância alimentar em cães

Os mecanismos de intolerância à alimentos em cães e gatos incluem toxicidade alimentar, reações farmacológicas e metabólicas, dismotilidade, disbiose, efeitos físicos e sensibilidade dietética. As reações de intolerância alimentar são variáveis, geralmente dependentes da dose ingerida e podem ocorrer em qualquer idade. As reações farmacológicas são definidas como reações adversas a compostos alimentares biologicamente ativos, naturais e adicionados, como as metilxantinas presentes na cafeína (Allen et al. 1984). O produto ingerido continha 13 ingredientes, com objetivo de acelerar o metabolismo e auxiliar perda de peso. A estimativa de ingestão dos compostos presentes pelo animal é apresentada na tabela 1. Infelizmente alguns ativos não têm sua quantidade declarada pelo fabricante.

Composição do produto e estimativa de ingestão
Tabela 1 - Composição do produto e estimativa de ingestão

O principal ingrediente ingerido foi a cafeína (1,3,7-trimetilxantina) que é um composto orgânico com uma base purina chamada xantina (Wigderson, 1956). Após o consumo, a cafeína é quase completamente absorvida e metabolizada no fígado por enzimas de fase I (citocromo P450). A biodisponibilidade da cafeína é semelhante entre cães, ratos e camundongos (Arnaud, 2011). Em 1850, Lehmann relatou vários sinais clínicos dversos após administração oral de 2 a 10 g de cafeína. A síndrome foi denominada “cafeinismo”, caracterizada por inquietação, nervosismo, ansiedade, irritabilidade, agitação, tremor muscular, insônia, diurese, taquicardia, arritmia, respiração elevada e distúrbios gastrointestinais (Arnaud, 2005). Para cães, pode ser tóxica especialmente para o sistema nervoso central e cardiovascular. Polidipsia, vómitos, diarreia, e inquietação de 6 a 12 horas após a ingestão, seguidas por hiperatividade, poliúria, ataxia, tremores e convulsões. A morte pode ocorrer por arritmias cardíacas ou falha respiratória (Finlay e Guiton 2005).

Apresentação do caso

Cão, pug, castrada, de 11,5 kg de peso corporal (PC) foi encontrada junto ao pote de suplemento alimentar contendo dentre os ingredientes cafeína. O animal apresentava diarreia com escore de condição fecal (ECF) 1/5 (Carciofi, 2008), com odor de café, vômitos, excitação, dificuldade de deambulação, ofegação e polipdsia. Foi, então, levado em clínica de emergência. Ao exame físico foi detectado taquicardia (FC: 160 bpm), hipertermia (40 °C), taquipneia (FR: maior do que 200 MRPM), hipertensão (PAS: 140 mmHg), mucosas hipercoradas, hiperglicemia (147 mg/dL). Foram administradas as medicações (Tabela 2):

Medicações administradas para estabilização do paciente
Tabela 2 - Medicações administradas para estabilização do paciente

Após estabilização do quadro o paciente foi liberado. Ao entrar no carro, houve aumento do quadro de agitação e cianose. Assim, foi constatado angústia respiratória e prosseguiu-se com atendimento de emergência (Tabela 2). Ao tentar suporte de oxigênio com sonda intranasal houve lesão e epistaxe seguido de convulsão. A partir deste momento, foram necessários procedimentos de sedação, intubação orotraqueal e sondagem uretral. O animal apresentava taquicardia (180 bpm), hipertermia (39°C) e hipertensão. Foi mantido intubado durante três horas em fluidoterapia com infusão contínua de noradrenalina.

Após 48 horas ainda apresentava agitação, poliúria, polipdsia, fezes com ECF 2/5 ainda com odor de café e não conseguia se manter em pé; hiporexia, feridas cutâneas (Imagem 1) e tosse. Animal aceitou ração com palatabilizantes apenas 25% da sua necessidade energética de manutenção (NEM).

Após 48 horas da exposição, foi detectado tosse, PAS: 130, FC: 155 bpm. Eletrocardiograma havia aumento de duração de onda P e QRS sendo sugestivo de sobrecarga de átrio direito e ventrículo esquerdo. Foi prescrito fluidoterapia, protetores gástricos, hepatoprotetores, ácido ascórbico (70 mg/kg/IV BID) e carvão ativado (2 g/kg VO). A ultrassonografia detectou gastrite e hepatopatia grave. O animal apresentou perda de 7% de seu PC em três dias, nesse momento apresentava escore de condição corporal (ECC) 6/9 e escore de massa muscular (EMM) 2/3 (Laflamme, 1997).

Cinco dias após exposição, seguia com quadro de tosse e exame radiográfico sugestivo de bronquite e edema pulmonar. No oitavo dia, o animal estava estável, porém ainda apresentava diarreia ECF 2/5 e hiporexia, consumo inferior a 50% da sua NEM. Em ultrassonografia, as imagens sugeriram colite, alteração hepática por intoxicação e edema pancreático. Foi prescrito metronidazol (15 mg/kg VO BID), cerenia (0,1 ml/kg IV), tramal (4 mg/kg SC TID) e mirtazapina (0,6 mg/ Kg SID).

Quinze dias após a intoxicação, o paciente apresentava bom estado geral. Perdeu mais 400 gramas de PC, apresentava ECC 5/9 e EMM 1/3. Após um mês, apresentou sinais clínicos de cistite bacteriana e hiperglicemia (150 mg/dL), porém sem glicosúria. Animal perdeu mais 200 gramas de PC. O laudo de exame ultrassonográfico foi sugestivo de colite e pancreatopatia crônica.

Após 82 dias do acidente, o animal ainda apresentava hiperglicemia (320 mg/dL) e glicosúria, sendo então, concluído o diagnóstico de diabetes mellitus, decorrente da pancreatite aguda, e em consequência da intoxicação por termogênico. Foi prescrito o manejo com insulina de ação prolongada NPH (0,25 UI/kg BID) e manejo nutricional com alimento coadjuvante em duas refeições e mesma caloria. Desde o início o animal perdeu 1,5 kg de PC.

Discussão

Alimento humano é a segunda causa mais relatada de reações adversas em cães (APCC, 2023), estando a cafeína dentre os mais frequentes e um dos poucos que resultam em fatalidades (Lee, 2020). A meia-vida da cafeína em cães é em média 4,5 horas; os sinais clínicos podem surgir a qualquer momento após a ingestão e podem permanecer durante horas ou dias (Craig, 2019).

O consumo de grandes quantidades leva à saturação do metabolismo da cafeína (Martinzes-Lopes et al., 2014). A cafeína aumenta a renina plasmática, concentrações de catecolaminas e pressão arterial, estimula o miocárdio, com aumento da frequência cardíaca e nos rins promove diurese, justificando a poliúria e sobrecarga ventricular (Robertson et al., 1978).

A paciente apresentou quadro hiperglicêmico, que pode ser parcialmente justificado pela alta caloria ingerida pelo produto (550 kcal), sendo 93% da sua NEM. Além disso, há evidências que a cafeína sozinha promove efeitos adversos no metabolismo da glicose e reduz a sensibilidade à insulina (Lane, 2008, 2011). Estima-se que o animal tenha ingerido 58,3 mg de cafeína. Segundo Craft e Powell (2011) até 50 mg/kg: há sinais moderados, >50 mg/kg: sinais cardiotóxicos e entre 120–200mg/kg a Dose Letal 50 para cães.

Para os triglicerídeos de cadeia média não há relatos de toxicidade (Traul et al., 2000), esses apresentam diversas propriedades funcionais devido à forma como são absorvidos e metabolizados (Hand et al., 2000; Trevizan e Kessler, 2009). Outro fator foi a perda de peso aguda do paciente. Isso pode ser atribuído aos TCM e a cafeína, que aumenta a taxa metabólica, gasto energético e apresentam efeitos lipolíticos (Colleone, 2002; Fredholm, 2011).

O gengibre é considerado seguro e eficaz contra certas doenças (Kalpagam e Nirmala, 2003), e a pimenta negra (Piper nigrum) demonstrou efeitos hepatoprotetores, antioxidantes e prevenção de ganho de peso (Zodape; Gaikwad, 2019; Mballa, 2021). O extrato de chá verde (Camellia sinensis) é um ingrediente comum em alimentos secos para cães. As catequinas, ativo do chá verde, tem suposta ação anti-envelhecimento, antitumoral e antioxidantes (Plantz, 2017; Beynen, 2020). Estudos recentes realizados em cães em jejum revelaram efeitos letais limitadores de dose, incluindo necrose hepática, gastrointestinal e renal. Os mecanismos de toxicidade não são conhecidos (Wu e Boring, 2011). A dose de chá verde, piper nigrum, gengibre e TCM não era declarada e sua possível participação na intoxicação não pôde ser avaliada.

Após a intoxicação, o animal apresentou quadro de inflamação no pâncreas. A patogênese não é compreendida pois envolve múltiplas vias e processos inflamatórios (Mansfield, 2012; Walton, 2020). Independentemente da causa inicial, ocorre ativação desregulada e descontrolada de enzimas proteolíticas pancreáticas dentro das células acinares e sendo o tripsinogênio responsável pela morte celular (Dawra et al., 2011).

Para estimar a associação entre fatores dietéticos e pancreatite em cães (Lem et al., 2008) realizou um estudo retrospectivo com 198 casos de pancreatite em cães. Os relatos de ingestão de alimentos inadequados foram significativamente associados com pancreatite. Isso sugeriu que a exposição a um alimento incomum pode ser importante na patogênese da pancreatite.

Segundo (Santos e Alessi, 2016) a terapêutica para pancreatite aguda e hepatotoxicidade incluem hepatoprotetores, fluidoterapia, analgesia, gastroprotetores, antibióticos e nutricição. Apesar das alterações da pancreatite aguda, como edema, necrose e inflamação, serem reversíveis, pode ocorrer comprometimento das funções endócrina e exócrina e o desenvolvimento da Diabetes Melitus (Lack, 2003; Watson, 2012). Nesse caso é provável que a ingestão de alimento incomum levou ao quadro de pancreatite aguda, apesar de ser difícil determinar qual foi o ingrediente responsável dentre os compostos. Apesar da terapêutica, a enfermidade progrediu para diabetes melitus.

Conclusão

A ingestão de produto com cafeína resultou em intoxicação, perda de peso, edema pancreático e, consequente, diabetes mellitus. O conhecimento das doses tóxicas e mecanismos de ação dos compostos permite maior segurança de uso. Destaca-se que TCM, Piper nigrum e chá verde não tinham dose declarada, tornando difícil se estabelecer sua relação com o quadro clínico.

Imagem 1 - Após 48 horas, fezes e feridas cutâneas da paciente

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