Descubra as causas, sintomas e tratamentos da gengivite crônica felina, uma condição multifatorial que afeta a saúde bucal dos gatos.
A gengivite crônica felina (FCG), é uma síndrome oral inflamatória, e bastante frequente na rotina clínica veterinária. Sua ocorrência tem sido reportada em diferentes localidades e populações de gatos domésticos. Somente para ilustrar, em 2014, na Inglaterra, um estudo mostrou que a doença oral foi a mais prevalente entre 3.584 atendimentos clínicos, representando 13,9% das ocorrências (O’NEILL et al., 2014). Já no Brasil, a FCG foi a terceira afecção mais comum em um grupo de 588 gatos atendidos, sendo superada apenas pela periodontite e pelas lesões de reabsorção dentária (VENTURINI et al., 2007).
Os gatos com FCG podem apresentar uma variedade de sinais clínicos, mas os principais são: falta de apetite, mau hálito, dificuldade para se alimentar, salivação excessiva, dificuldade em higienizar-se, sangramento gengival, desidratação e perda de peso. Inicialmente, acredita-se que seja um processo indolor, podendo permanecer sem tratamento por um longo período. Entretanto, alguns gatos sentem dor e podem apresentar alteração de comportamento, inclusive tornando-se agressivos (BELLEI et al., 2008; LOMMER, 2013).
Das doenças inflamatórias orais comumente vistas na prática veterinária, a FCG tem sido a mais pesquisada, mas, por outro lado, sua etiopatogenia ainda não foi totalmente elucidada. Entretanto, acredita-se que seja uma doença multifatorial em que a associação de diferentes fatores contribui para sua instalação e manutenção. Dentre esses fatores, destacam-se as infecções virais e bacterianas, além dos fatores nutricionais, ambientais (estressores) e de manejo associados a fatores genéticos (DOLIESLAGER et al., 2013; LEE et al., 2020), mas as inter-relações entre esses fatores não foram estabelecidas.
O que pode ser o desencadeador de uma FCG?
Alguns autores relatam em seus estudos uma maior ocorrência da FCG em gatos das raças asiáticas, o que poderia indicar um forte componente genético. Porém, quais fatores genéticos acarretariam a FCG permanecem desconhecidos.
Por outro lado, a idade também tem sido indicada como fator predisponente para FCG, sendo a faixa etária de maior risco entre 8 a 15 anos de vida. No entanto, a idade como fator predisponente também foi refutada em alguns estudos (GIRARD et al., 2009; OLDER et al.,2020).
Segundo publicação recente, a FCG pode estar associada a ambientes com alta densidade populacional de gatos, assim como ao acesso frequente à rua. Os estudos mostraram que essas condições, além de serem estressantes para os animais, favorecem as infecções virais que podem desencadear o processo inflamatório e resultar em FCG (PERALTA et al., 2019).
Porém, é provável que o desenvolvimento de FCG esteja relacionado a uma anormalidade imunológica, especificamente no que diz respeito aos mediadores inflamatórios produzidos por linfócitos e células plasmáticas em resposta a infecções bacterianas e/ou virais, assim como pelo desequilíbrio da microbiota oral (disbiose) (LEE et al., 2020).
Vários vírus têm sido apontados como fatores desencadeadores das alterações imunológicas e do processo inflamatório observado na cavidade oral dos gatos com FCG. Os vírus mais frequentemente associados à FCG são: vírus da imunodeficiência felina (FIV), vírus da leucemia felina (FeLV), calicivírus felino (FCV) e herpesvírus felino (FeHV) (LYON, 2005; LEE et al., 2020).
FIV e FeLV
FIV e FeLV, ambos retrovírus de ampla disseminação mundial na população felina, têm sido apontados com um dos principais fatores predisponentes da FCG. Inclusive, tem sido postulado que cerca de 50 a 80% dos gatos FIV positivos podem apresentar gengivite crônica (HOSIE et al., 2009).
É sabido e de consenso que tanto o FIV como o FeLV acarretam imunossupressão em gatos infectados, favorecendo a ocorrência de infecções oportunistas e quadros severos de FCG. Contudo, o mecanismo exato de como esses vírus atuam e estão associados à FCG ainda não é conhecido.
Visando entender melhor este mecanismo, nosso grupo de pesquisa realizou um estudo com gatos domésticos FIV positivo com e sem gengivite, com objetivo de correlacionar a infecção por esse vírus ao desequilíbrio da microbiota oral, um possível desencadeador da FCG. Nossos resultados não mostraram que a infecção pelo FIV realmente pode desencadear um desequilíbrio da microbiota oral.
Porém, embora os resultados não tenham mostrado uma forte influência da infecção pelo FIV na composição da microbiota oral, não se pode afirmar que não exista, pois é possível que nosso estudo não tenha conseguido detectar tais evidências (OLDER et al., 2020).
FCV
O calicivírus felino (FCV) é um patógeno de alta infectividade e prevalência, que induz doença oral e respiratória (RADFORD et al., 2007). Sua alta prevalência tem sido diretamente relacionada à alta densidade populacional felina, com taxa de prevalência estimada de 10% em grupos pequenos, enquanto em grandes colônias ou abrigos de 25-40% (RADFORD et al., 2009).
Alguns estudos mostraram uma associação entre a infecção pelo FCV com a FCG (THOMAS et al, 2017). No entanto, estudos experimentais não conseguiram elucidar os mecanismos relacionados entre FCV e a FCG, o que reflete a necessidade de mais estudos sobre o tema.
FeHV
Outro agente viral amplamente disseminado entre os gatos e associado a afecções orais é o herpervírus felino (FeHV). Estima-se que mais de 90% dos animais sejam soropositivos para FeHV (GOULD, 2011). Após um período de incubação de 24 a 48 horas, os gatos infectados podem apresentar descarga nasal serosa, que pode evoluir para mucopurulenta mediante a colonização bacteriana secundária.
Além disso, os gatos podem apresentar apatia, falta de apetite, conjuntivite, espirros, febre, salivação excessiva, com ou sem ulcerações orais e, em casos severos, tosse e dificuldade respiratória (LARA, 2012). Entretanto, não é conhecido o mecanismo pelo qual esse vírus induz o processo inflamatório oral e se realmente é um fator predisponente. Sabe-se apenas que ele se encontra difundido na população de gatos e que esses animais podem apresentar ulcerações orais.
E as bactérias? Podem causar a FCG?
Também não podemos afirmar, pois muitos gêneros bacterianos constituem a microbiota oral dos animais domésticos, inclusive dos felinos, o que torna um desafio estabelecer a exata participação destes microrganismos na etiopatogenia da FCG. Porém, alguns esforços já foram realizados nesse sentido.
Particularmente, um gênero que tem instigado novas abordagens científicas e merece destaque é Odoribacter spp. Esse gênero foi descrito recentemente a partir de amostra da cavidade oral de um cão com doença periodontal, e cuja denominação (O. denticanis) está associada à ocorrência de halitose fétida.
Em um modelo de rato com doença periodontal, essa bactéria foi capaz de causar doença oral, indicando que pode ser um patógeno relevante em animais (HARDHAM et al., 2008), inclusive essa espécie também foi encontrada em gatos com doença periodontal (PEREZ-SALCEDO et al., 2015).
Ademais, ele foi encontrado em abundância significativamente maior na cavidade oral de gatos com gengivite severa em comparação com gatos sem gengivite e com quadros leves a moderados de FCG (OLDER et al., 2020). Entretanto, obviamente, novas investigações são necessárias para demonstrar a real importância desse gênero bacteriano no que tange a FCG.
Ao estudar a microbiota oral, a dieta geralmente é um fator de particular interesse. É consenso que os nutrientes podem moldar as comunidades orais através do metabolismo do hospedeiro ou microbiano.
O regime de dieta (alimento úmido x alimento seco) já demonstrou influenciar as comunidades microbianas na cavidade oral dos felinos, com gatos alimentados com alimentos secos tendo comunidades microbianas mais diversas do que gatos alimentados com alimentos úmidos e com várias diferenças na composição das comunidades (ADLER et al., 2016).
Mas qual é o impacto real da dieta na saúde oral dos gatos?
Older e colaboradores (2020), visando determinar a influência da dieta para a ocorrência da FCG, investigaram o manejo nutricional em relação ao regime alimentar (alimento seco, alimento úmido, mistura de alimento seco e alimento caseiro), alimentação específica e inclusão de ingredientes funcionais em gatos com e sem gengivite.
Na análise dos dados, até foram observadas algumas diferenças na composição das comunidades microbianas e no resultado funcional preditivo, mas nenhuma diferença significativa na diversidade foi encontrada, que poderia confirmar a dieta como fator predisponente para o desequilíbrio da microbiota e consequente etiologia para FCG.
Portanto, a dieta certamente influencia a microbiota oral, mas, se positivamente ou negativamente, não se sabe ainda. Consequentemente, mais esforços serão necessários para determinar o impacto que pode ter na saúde oral dos gatos. A microbiota pode gerar uma vasta gama de metabólitos, e sua identificação e caracterização é um grande desafio para os pesquisadores da área.
É possível que as alterações no metabolismo bacteriano afetem a forma como o hospedeiro é capaz de responder aos microrganismos ou a regulação da resposta imune, resultando potencialmente em aumento da inflamação, mesmo na ausência de uma disbiose. Em gatos domésticos, ainda não foram identificadas quais condições nutricionais podem alterar a microbiota oral e, consequentemente, influenciar a ocorrência da gengivite crônica.
Pelo exposto, concretamente, sabe-se muito pouco sobre a etiopatogenia da FCG, porém está claro que é uma doença multifatorial e que apontar uma causa única provavelmente seja impossível. Mas, percebe-se que medidas de controle e prevenção dos agentes virais, a manutenção da microbiota oral e um regime nutricional adequado são fatores importantes para prevenir ou mesmo controlar a FCG.