Orientador(a): Thiago Henrique Annibale Vendramini
Instituição: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP – FMVZ USP
Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.
Índice
Resumo
A lama biliar e a mucocele são afecções das vias biliares cuja patogenia não é totalmente esclarecida. A primeira cursa com acúmulo de bile semissólida móvel no lúmen, e a segunda com um acúmulo de bile semissólida imóvel que leva a uma obstrução das vias biliares. Tal obstrução leva a sinais clínicos como êmese, apatia e prostração, podendo evoluir para ruptura do órgão, peritonite, sepse e óbito. O diagnóstico é feito através do exame ultrassonográfico, onde se observa as vias biliares em uma imagem “estrelada” na mucocele. No caso da lama biliar, a mesma se apresenta ao ultrassom como um achado incidental de acúmulo de conteúdo isoecogênico ou hiperecogênico dentro da vesícula biliar. O tratamento de escolha é a colecistectomia e medicações de suporte para estabilização do quadro do paciente. A dieta tem impacto no tratamento clínico de ambas as afecções, sendo recomendável o uso de um alimento com baixo teor de gorduras, alta digestibilidade e boas fontes proteicas. Devido a alta incidência verificada, o presente estudo teve o objetivo de revisar a literatura disponível e analisar as características da mucocele e da lama biliar e qual o papel da nutrição no tratamento e prevenção dessas afecções.
Palavras chave: Cães, lama biliar, mucocele, vesícula biliar
Introdução
A vesícula biliar é uma estrutura anatômica em formato de pera localizada junto ao fígado, cuja função é de armazenar e posteriormente secretar a bile produzida pelos hepatócitos (GUYTON & HALL, 2011; SECCHI, 2011). A bile, por sua vez, contém sais biliares responsáveis pela emulsificação de gordura, sendo essencial na digestão desse nutriente. Caso haja uma diminuição da motilidade das vias biliares e/ou aumento da secreção de mucina (muco produzido pelas células parietais) além do normal, a bile se torna espessa e acaba por formar a lama biliar, que pode progredir em um quadro de obstrução chamado mucocele (COQUI & SALZO, 2020). A mucocele é uma afecção biliar extra-hepática relevante na clínica de pequenos animais, podendo se tornar um quadro grave a depender da demora no diagnóstico e instauração de um tratamento eficiente. O diagnóstico pode ser desafiador por conta da inespecificidade dos sinais clínicos, sendo a ultrassonografia uma peça-chave nesse processo (AZOIA et al., 2019; JERICÓ et al., 2015).
O objetivo do presente estudo é avaliar referenciais teóricos relevantes acerca das características da lama biliar e mucocele, e analisar o papel da nutrição no tratamento e prevenção desses quadros.
Desenvolvimento
Características gerais
A lama biliar caracteriza-se como uma bile de consistência espessa e móvel, que é um achado considerado fisiológico em cães; e, se agravado, pode ser causa de obstrução das vias biliares e levar chamada mucocele. A mucocele é, portanto, uma afecção das vias biliares em que há acúmulo anormal de bile semissólida (Ribeiro et al., 2020) que se torna imóvel nesses canalículos e desencadeia complicações, tais como isquemia e necrose. Tais lesões podem evoluir, sem tratamento, para ruptura do órgão, peritonite e em casos mais graves óbito do animal.
Patogenia
A patogenia desses distúrbios não é completamente esclarecida (COQUI & SALZO, 2020; JERICÓ et al., 2015). Uma das hipóteses aceitas é de que a hiperplasia das células parietais leve a um aumento da produção de mucina, que é uma substância protetora da mucosa das vias biliares (ANDRADE et al., 2020). Tal mecanismo induz acúmulo de bile e muco no lúmen do órgão e, consequentemente, obstrução das vias. O que motiva essa hiperplasia e aumento da produção de muco ainda não é elucidado. A redução da motilidade das vias também é um fator que contribui para a colestase (SECCHI, 2011).
Fatores de risco
Não parece haver predileção sexual na incidência de tais doenças. Animais de meia-idade e com idade mais avançada são mais predispostos que animais jovens. A presença de distúrbios endócrinos como hipercortisolismo, hipotireoidismo e hiperlipidemia parece estar relacionada com maior incidência de alterações na composição e fluxo da bile, que predispõe animal a apresentar mucocele. Em relação à predileção racial, os animais das raças Pastor de Shetland, Schnauzer miniatura e Cocker Spaniel são mais afetados (JERICÓ et al., 2015; SILVA et al., 2022).
Tais doenças acometem mais os cães que os gatos, já que estes possuem menos células produtoras de muco nas vias biliares, o que leva à formação de uma bile mais diluída (SILVA et al., 2022).
Sinais clínicos
Os animais acometidos por essas doenças apresentam sinais clínicos inespecíficos, como êmese, apatia, anorexia, polidipsia, poliúria, icterícia, febre e abdominalgia. Os animais também podem ser assintomáticos, sendo diagnosticados incidentalmente durante exames de imagem como a ultrassonografia. A inespecificidade dos sinais clínicos pode levar a uma demora no diagnóstico, elevando os riscos de complicações e mortalidade. Portanto, se faz necessário maior conhecimento e atenção dos médicos-veterinários para que o diagnóstico e a intervenção terapêutica sejam feitos de forma mais precoce possível (JERICÓ et al., 2015; RIBEIRO et al., 2020).
Diagnóstico
O diagnóstico se dá através da observação dos sinais clínicos, como apatia, êmese, prostração, icterícia, abdominalgia, e por exames de imagem e laboratoriais. Ao ultrassom, é possível observar espessamento das paredes das vias biliares e acúmulo de conteúdo semissólido no lúmen do órgão, formando uma imagem “estrelada” bastante característica (DELEONE COSTA ROSA et al., 2022).
Essas lesões em vesícula biliar podem levar a complicações relacionadas ao fígado, devido à proximidade anatômica e compartilhamento de diversos processos fisiológicos (RIBEIRO et al., 2020). No quadro de mucocele, os animais podem apresentar aumento nas enzimas hepáticas (fosfatase alcalina, gama-glutamiltransferase), assim como leucocitose por neutrofilia (ANDRADE et al., 2020; JERICÓ et al., 2015).
Tratamento
A escolha do tratamento deve ser feita de forma cautelosa, considerando o estado em que o animal é levado ao atendimento e a viabilidade das opções – cirúrgica ou clínica, sendo que o prognóstico é variável (JERICÓ et al., 2015). O tratamento de escolha é o cirúrgico, sendo indicado realizar a colecistectomia, desde que o animal se encontre em condições adequadas para ser submetido ao procedimento cirúrgico (SILVA et al., 2022).
Caso se opte pelo tratamento clínico, é necessário cuidado redobrado na monitoração do quadro, uma vez que é possível que o animal evolua negativamente para uma isquemia do órgão, ruptura, peritonite, sepse e óbito (JERICÓ et al., 2015). O uso do ácido ursodesoxicólico é indicado, uma vez que este medicamento auxilia na diluição da bile, assim diminuindo a sedimentação dos cristais no lúmen e evitando a obstrução (ANDRADE et al., 2020). Em casos de peritonite e outras complicações relacionadas ao diagnóstico tardio, o uso de antimicrobianos é indicado para debelar infecções.
É possível optar pelo tratamento antimicrobiano empírico, porém, idealmente, deve-se fazer a cultura e antibiograma do líquido peritoneal para escolher devidamente o antimicrobiano ao qual o patógeno é sensível (CORNEJO & WEBSTER, 2005; SILVA et al., 2022).
O papel da nutrição no tratamento
Shikano (SHIKANO et al., 2022) sugere que dietas com baixa proteína, altos níveis de colesterol e carboidrato e deficientes em metionina induzem a formação de lama biliar e cálculos vesiculares. Ademais, acredita-se que dietas com baixos teores de carboidratos e lipídeos diminuem a produção de mucina pelas células parietais da vesícula biliar, além de diminuir a concentração dos ácidos biliares, responsáveis por estimular a produção de mucina.
O uso de fibras solúveis pode ser relevante no tratamento de tais afecções. Schwesinger (SCHWESINGER et al., 1999) sugere que a suplementação de fibras solúveis como psyllium sendo suplementado a 5% na dieta têm impacto positivo na redução dos níveis de colesterol se comparado ao grupo controle em estudo com cães da pradaria. Tal método seria interessante no tratamento de animais acometidos por mucocele através da diminuição dos níveis de colesterol circulantes.
Em estudo de Christian (CHRISTIAN & REGE, 1996), foi demonstrado que níveis ótimos (entre 45 a 55mg/kg/dia) de metionina na alimentação de cães foram mais eficientes em prevenir a formação de lama biliar em relação ao observado com o uso de taurina. Tal resultado é indicativo que uma dieta com níveis adequados de proteína de boas fontes tem impacto positivo no tratamento e prevenção da lama biliar.
Considerações finais
A lama biliar e a mucocele são quadros relevantes na clínica de pequenos animais, especialmente em cães. O desenvolvimento de novas estratégias de enfrentamento dessas afecções é necessário, a fim de diminuir a morbidade pela prevenção e mortalidade através do tratamento eficiente de animais doentes. Ainda são necessários mais estudos para esclarecer completamente a patogenia da mucocele e da lama biliar em cães. Além disso, há pouca literatura acerca do uso de dietas específicas em animais com essas doenças, sendo utilizadas extrapolações feitas em animais sadios.
Abaixo, segue um esquema comparativo das principais características das duas afecções.
Referências bibliográficas
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