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Obesidade, inflamação e mecanismos biológicos promotores de câncer: evidências em cães

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Autor(a): Pedro Henrique Marchi

Orientador(a): Marcio Antonio Brunetto

Instituição: FMVZ USP

Trabalho Aprovado na 8ª Edição (2022) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

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Índice

Resumo

A associação entre obesidade e câncer tem despertado o interesse da comunidade científica nos últimos anos. Tratam-se de duas doenças que, direta ou indiretamente, são importantes causas de morte em animais de companhia. A obesidade é a principal doença nutricional em cães e sua prevalência tem aumentado nas últimas décadas, de forma que vários países têm demonstrado prevalência semelhante à observada em humanos. Esta é responsável por reduzir a expectativa e qualidade de vida dos cães e predispor o desenvolvimento de outras doenças. Os prejuízos causados pela obesidade são associados a fatores físicos, devido ao excesso de peso e pressão sobre estruturas anatômicas e, principalmente, por mecanismos metabólicos e endócrinos.

O tecido adiposo branco desempenha funções de isolamento térmico, proteção mecânica e armazenamento de energia, outrossim é considerado um órgão endócrino responsável por produzir e secretar hormônios e citocinas denominadas adipocinas. Contudo, o ganho de peso excessivo promove remodelamento no tecido adiposo branco, o qual torna-se disfuncional. Desta forma, um ciclo vicioso é estabelecido, caracterizado pela modulação e estimulação exagerada do sistema imunológico e pela produção e secreção anormal de adipocinas e citocinas pró-inflamatórias. Como resultado, é estabelecido um estado de inflamação crônica de baixo grau, que é a base proeminente para explicar como a obesidade resulta em inúmeras consequências negativas para a saúde.

Estudos recentes têm apontado para a associação entre obesidade e predisposição a tipos específicos de câncer e suas complicações. Tais elucidações são importantes porque, assim como a obesidade, a prevalência de câncer em cães tem aumentado nas últimas décadas. Apesar do grande desafio, esta revisão objetiva destacar as evidências publicadas até o momento em relação a associação entre obesidade, inflamação e câncer em cães e os possíveis mecanismos fisiopatológicos que correlacionam obesidade e carcinogênese.

 

Palavras-chave: sobrepeso, resistência insulínica, resistina, tumores, caninos

Introdução

A obesidade é caracterizada como o acúmulo anormal ou excessivo de tecido adiposo que prejudica a saúde e bem-estar dos animais (BROOKS et al., 2014). Desde 1980, a prevalência de seres humanos em sobrepeso ou obesos dobrou e, nos dias atuais, acomete aproximadamente um terço da população (CHOOI et al., 2019). Dado que a obesidade é considerada a doença nutricional mais comum em animais de companhia, esta tendência aparenta estender-se aos cães (GERMAN, 2006). Há quase duas décadas, nos Estados Unidos e Austrália, o sobrepeso acometia entre 29 e 33,5% dos cães e a obesidade, 5,1 e 7,6% (MCGREEVY et al., 2005; LUND et al., 2006). Estudo de Porsani et al. (2020) estimou que 25,9% dos cães em São Paulo estão em sobrepeso e 14,6% obesos, o que representa aumento em até três vezes o percentual de cães obesos. O retratado cenário é preocupante, pois a obesidade é responsável pela redução da expectativa e qualidade de vida de cães (GERMAN et al., 2012; SALT et al., 2019) e eleva o risco de desenvolvimento de comorbidades, como distúrbios ortopédicos (KEALY et al., 2000; FRYE et al., 2016), doenças cardiovasculares (TROPF et al., 2017), alterações respiratórias (PEREIRA-NETO et al., 2018), resistência insulínica (BRUNETTO et al., 2011) e tipos específicos de neoplasias (GLICKMAN et al., 1989; SONNENSCHEIN et al., 1991; MARINELLI et al., 2004; WEETH et al., 2007; LIM et al., 2015a)

O câncer é comumente diagnosticado em animais de companhia e estima- se que seja a principal causa de morte em cães com idade aproximada de 10 anos (FLEMING et al., 2011; BAIONI et al., 2017). Dentre as neoplasias diagnosticadas, aproximadamente 50% são malignas e, de acordo com a American Animal Hospital Association (AAHA), a incidência de casos oncológicos está em crescimento, justificado pela melhoria na qualidade de vida dos animais (VASCELLARI et al., 2009; GRÜNTZIG et al., 2015; BILLER et al., 2016). Em 2000, Hanahan e Weinberg definiram pela primeira vez as “Hallmarks of cancer”, que compreendem seis capacidades biológicas adquiridas durante o complexo desenvolvimento de tumores em humanos (HANAHAN & WEINBERG et al., 2000). Em outro artigo, publicado em 2011, os mesmos autores incluíram a cascata e o estado inflamatório como características que podem resultar na ativação de múltiplas capacidades biológicas promotoras do desenvolvimento tumoral (HANAHAN & WEINBERG, 2011). Na versão mais recente da série, Hanahan (2022) reforçou o papel da inflamação na promoção do tumor e acrescentou características adicionais envolvendo reprogramação epigenética não mutacional, impacto do microbioma e células senescentes (HANAHAN, 2022).

Sabe-se que o excesso de tecido adiposo branco resulta em produção desregulada de adipocinas e estimula secreção excessiva de citocinas pró- inflamatórias (ZORAN, 2010). Este estado pode culminar no estabelecimento de resistência à insulina e inflamação crônica, as quais podem desencadear o desenvolvimento tumoral e agravar a malignidade de diversos tipos de câncer (AUBRY et al., 2005; BARB et al., 2007). Portanto, cães expostos a fatores com potencial carcinogênico como os observados na obesidade e diabetes mellitus estão mais propensos a desenvolverem câncer e tendem a apresentar redução na resposta às terapias oncológicas (ZORAN, 2010).

A percepção do tecido adiposo branco como órgão endócrino e suas alterações em animais obesos permitiu a compreensão mais profunda da fisiopatologia da obesidade e como ela predispõe a outras doenças. Os distúrbios inflamatórios, endócrinos e metabólicos desencadeados pela obesidade são sinérgicos com mecanismos que promovem o desenvolvimento tumoral. Portanto, esta revisão buscou elucidar os possíveis links relacionados aos efeitos da obesidade e sua correlação com a carcinogênese.

Desenvolvimento

Os adipócitos brancos são metabolicamente ativos e produzem uma série de hormônios e citocinas responsáveis por regular funções fisiológicas, as quais incluem o controle do apetite, modulação da resposta imune e inflamatória, metabolismo da glicose e de lipídios, tais como outras ações que garantem a homeostase do organismo (RODRÍGUEZ et al., 2015; UNAMUNO et al., 2018). O ganho de peso excessivo induz o tecido adiposo branco ao processo de remodelamento celular e estrutural, de modo a adaptar-se ao armazenamento da energia excedente. Neste processo, ocorre expansão do tecido adiposo por meio da hipertrofia celular (WANG et al., 2013) e remodelação da matriz extracelular (SUN et al., 2013), cujas ações levam ao comprometimento da angiogênese, que resulta em hipóxia, morte celular, fibrose e inflamação. Devido a estes mecanismos fisiopatológicos, o tecido adiposo branco torna-se disfuncional (PELLEGRINELLI et al., 2016).

 

Informações disponíveis na literatura apontam que a obesidade resulta em estado inflamatório crônico de baixo grau (TRAYHURN, 2005), caracterizado pela produção e secreção anormais de adipocinas e citocinas pró-inflamatórias, desregulação da cascata de sinalização inflamatória e altas concentrações de proteínas de fase aguda na circulação (MAURY & BRICHARD, 2010). Ademais, por meio da ação de adipocinas, os adipócitos brancos disfuncionais induzem o recrutamento exagerado de células imunes e alteram a imunidade inata e adaptativa (FERRANTE, 2013; DALMAS et al., 2014). Ambas estas cascatas passam a funcionar em uma espécie de ciclo vicioso, cujos mecanismos corroboram a manutenção da inflamação crônica e modulação das funções imunes (GERMAN et al., 2010; WANG et al., 2013; CORTESE et al., 2019). Dentre as adipocinas estudadas, destacam-se os mediadores produzidos majoritariamente pelos adipócitos brancos: leptina, adiponectina e resistina e as citocinas pró- inflamatórias interleucina-6 (IL-6) e interleucina-8 (IL-8), fator de necrose tumoral- alfa (TNF-α), proteína c-reativa (CRP) e a proteína quimioatrativa de monócitos-1 (MCP-1).

Na medicina humana, há evidências sólidas que correlacionam a obesidade com o desenvolvimento de adenocarcinomas endometriais, esofágicos, pancreáticos e renais, carcinoma hepatocelular, meningioma e mielomas múltiplos; além de tumores de cólon e reto, ovário, vesícula urinária, tireoide e câncer de mama pós-menopausa (LAUBY-SECRETAN et al., 2016). Embora o papel da obesidade na carcinogênese não esteja totalmente compreendido, dados recentes sugerem uma série de mecanismos possivelmente envolvidos. Entre eles, a possível associação entre o estado inflamatório crônico de baixo grau, que devido à sua semelhança com o microambiente tumoral, é capaz de gerar sítios suscetíveis ao estabelecimento, infiltração e crescimento tumoral (IYENGAR et al. 2016; WANG et al., 2019).

Avgerinos et al. (2019) levantaram a hipótese de que a resistência insulínica pode estar envolvida na carcinogênese. O mecanismo de resistência é induzido por meio da ação de adipocinas como leptina, resistina, TNF-α, IL-6, MCP-1 e CRP e pelo estado inflamatório crônico de baixo grau (TANGVARASITTICHAI et al., 2016; AMIN et al., 2019). Consequentemente, o pâncreas secreta maior quantidade de insulina na circulação e, este hormônio suprime a formação de proteínas de ligação ao IGF-1 (RENEHAN et al., 2008; FOSAM & PERRY, 2020). A insulina e o IGF-1 disponível atuam como promotores do crescimento celular, angiogênese e linfangiogênese e como supressores da atividade apoptótica; mecanismos que promovem o desenvolvimento do tumor (POLLAK, 2012). Além das funções já descritas, o tecido adiposo periférico é responsável por secretar uma enzima denominada aromatase, cuja função é converter hormônios andrógenos em estrógenos (BULUN et al., 2005). Pessoas obesas apresentaram alta concentração de aromatase e, em consequência, maior concentração de estrógenos no organismo (CROSBIE et al., 2010). Esta alteração na concentração de hormônios sexuais está associada ao aumento do risco de desenvolvimento de câncer de mama na pós-menopausa em mulheres (BULUN et al., 2005). Além disso, o estado inflamatório induzido pela obesidade é capaz de alterar a sinalização do estrógeno, o que leva a danos no DNA, proliferação celular, promoção da angiogênese e mutagênese em diversos tipos de neoplasias (ATOUM et al., 2020).

Em cães, há um número consideravelmente menor de estudos sobre este tema. O primeiro trabalho que correlacionou a condição obesa ao desenvolvimento de câncer foi realizado em 1989 (GLICKMAN et al., 1989). Os autores objetivaram investigar a relação entre produtos químicos e exposição a inseticidas tópicos, obesidade e carcinoma de células transicionais (CCT) da bexiga. Por meio das informações obtidas, os autores foram capazes de observar que o risco de desenvolver CCT de bexiga era maior em cães obesos expostos ou não a inseticidas tópicos. Dois anos depois, Sonnenschein et al. (1991) identificaram que, entre cadelas castradas, a obesidade desenvolvida no início da vida pode aumentar o risco de tumores de glândula mamária. Da mesma forma que o estudo anterior, este foi realizado por meio de entrevistas e também teve a limitação de verificar a condição corporal de forma retrospectiva. Mais tarde, Weeth et al. (2007) apontaram possível associação entre a obesidade e o desenvolvimento de mastocitomas.

Em fêmeas não castradas, as neoplasias mais comuns são os tumores da glândula mamária, cuja incidência de malignidade é de aproximadamente 50% dos diagnósticos (ALENZA et al., 2000). Ademais, as cadelas são consideradas modelos animais para o estudo de câncer de mama em mulheres (GRAY et al., 2020). Em estudo realizado por Lim et al. (2015), buscou-se evidenciar a relação entre a expressão de aromatase, leptina e receptores de IGF-1 em carcinomas de glândula mamária, baseado no escore de condição corporal (LAFLAMME, 1997) de fêmeas caninas. Um total de 56 tumores foram comparados quanto à expressão dessas adipocinas, idade de desenvolvimento do tumor, grau histológico, invasão linfática, grau de necrose tumoral e presença de receptores hormonais para estrógeno e progesterona. Fêmeas em sobrepeso e obesas apresentaram desenvolvimento de carcinomas de glândula mamária em idades mais precoces quando comparadas a fêmeas em peso ideal. Além disso, 80% dos tumores que expressaram presença de aromatase foram observados em fêmeas obesas.

Por outro lado, Shin et al. (2016) não observaram correlação entre a concentração de aromatase, sobrepeso e obesidade em cães. Entretanto, sua identificação foi associada a expressão tumoral de prostaglandina 2 (PGE2) e leptina. A PGE2, ainda não retratada no presente estudo, possui ação carcinogênica ao influenciar o microambiente tumoral a partir da interação com seus receptores anormais, e dessa forma, modula a resposta imune associada ao tumor, suprime a apoptose, estimula a angiogênese e promove metástases (GREENHOUGH et al., 2009; NAKANISHI & ROSENBERG, 2013). Como a PGE2, o estrógeno e a progesterona desempenham papel significativo no crescimento e invasão de tumores de mama em mulheres (GERMAIN, 2011). Shin et al. (2016) identificaram em seu estudo expressão tumoral exacerbada de PGE2 em cadelas obesas e em sobrepeso. Além disso, embora não confirmado, há evidências de que o excesso de peso aumenta a secreção de aromatase, insulina e IGF-1, promovendo a carcinogênese em glândulas mamárias de cadelas (CLEARY, 2010).

Em estudo semelhante, Lim et al. (2015b) identificaram que cadelas com sobrepeso ou obesas desenvolveram carcinoma de glândula mamária mais cedo do que cadelas em peso ideal, resultado também encontrado por Lim et al. (2015a). Ademais, identificaram que a incidência de metástases por meio da corrente linfática foi maior e presença de tumores em estágio mais avançado quando comparados aos tumores em cadelas com peso corporal ideal. Os resultados também permitiram concluir que cadelas obesas ou em sobrepeso apresentam maior número de tumores com ausência de adiponectina e concentração mais elevada de macrófagos infiltrados, ambas correlacionadas com estadiamentos mais graves e metástase via linfática. Além disso, a presença de adiponectina foi associada com estadiamentos mais brandos (LIM et al., 2015b). Estes resultados indicam ação protetora da adiponectina no desenvolvimento tumoral e que o recrutamento de macrófagos induzido pela obesidade estimula o desenvolvimento, crescimento e metástase em carcinomas de glândula mamária em cadelas. Tesi et al. (2020), confirmaram a relação entre obesidade e sobrepeso em cadelas com o desenvolvimento de carcinomas de glândula mamária em estágios mais avançados. No entanto, não obtiveram êxito em correlacionar a adiponectina com os parâmetros: tamanho do tumor, grau histológico, metástases por meio da corrente linfática e escore de condição corporal.

Concentrações séricas elevadas de resistina foram observadas em humanos obesos e esta adipocina é considerada como ótimo fator prognóstico do câncer de mama (LAUBY-SECRETAN et al., 2016; PATRÍCIO et al., 2018; WANG et al., 2019). Um estudo realizado por Nicchio et al. (2020) objetivou avaliar a concentração sérica de resistina em cadelas com presença e ausência de carcinoma mamário misto e, a possível relação entre obesidade, carcinogênese e sobrevida do paciente. Os autores observaram concentrações circulantes de resistina três vezes maiores nos animais obesos em comparação aos em ECC ideal e, o aumento deste marcador apresentou associação com maior potencial de malignidade e menor sobrevida. Acredita-se que a leptina e a resistina apresentem ações semelhantes (NICCHIO et al., 2020). A leptina já foi correlacionada com a modulação da ação de hormônios esteroides (LIM et al., 2015a) e estimulação de metástases em tumores de glândula mamária (KIM et al., 2020).

Considerações finais

Com base nas evidências apontadas até o momento, os principais fatores que apresentam relação entre obesidade e carcinogênese são consequência das disfunções do tecido adiposo branco e inflamação crônica de baixo grau, alterações sinérgicas com o desenvolvimento de tumores. Destacam-se os mecanismos de ação da leptina, resistina, adiponectina, aromatase, hiperinsulinemia, IGF-1 e citocinas pró-inflamatórias. Estas sustentam a inflamação crônica, modulam o sistema imunológico e alteram a sinalização e ação de hormônios e da insulina. Como evidenciado, a maioria dos estudos com cães investigaram os efeitos da obesidade nos tumores de glândulas mamárias, devido a relevância desta neoplasia na rotina clínica. No entanto, a quantidade de artigos científicos publicados sobre o tema é relativamente escassa e a abrangência é específica. Portanto, são necessários novos estudos que busquem novas associações e elucidem mais sobre a fisiopatologia da obesidade e como ela predispõe e potencializa os cânceres.

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