Orientador(a): Fernanda Chicharo Chacar
Instituição: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo
Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.
Índice
Resumo
O teor reduzido de fósforo presente no alimento coadjuvante para nefropatas crônicos é um pilar no atual manejo nutricional de gatos com doença renal crônica (DRC). Entretanto, a observação em alguns estudos do surgimento de hipercalcemia total e ionizada nesta população, após a introdução do alimento coadjuvante, levantou alguns questionamentos, tais como: quais os teores de fósforo seriam ideais para gatos doentes renais crônicos doentes? De que forma a magnitude da relação cálcio:fósforo (Ca:P) pode contribuir para o desenvolvimento da hipercalcemia nesses gatos? Quando estaria indicada a introdução do alimento coadjuvante para os gatos nefropatas crônicos? Dessa forma, a presente revisão buscou discorrer sobre os principais estudos que abordam essas questões, e como podemos contextualizá-los na prática clínica. Os resultados desses estudos apresentam algumas evidências de que o uso de alimentos com teores muito reduzidos de fósforo pode levar à hipercalcemia ionizada e total em pacientes felinos doentes renais crônicos. Também demonstraram que a introdução de alimento com teores moderados de fósforo e de menor relação Ca:P levaram à resolução da hipercalcemia relacionada à dieta, sem prejuízo da função renal no período de observação do estudo. A melhor compreensão dos mecanismos envolvidos nos distúrbios do cálcio em felinos doentes renais crônicos é necessária, a fim de que seja possível estabelecer a composição mineral mais adequada dos alimentos coadjuvantes para estes pacientes.
Introdução
A DRC é uma condição clínica comum em gatos, na qual ocorre a retenção de produtos do catabolismo proteico e de fosfato (Schauf et al., 2021), com maior prevalência em gatos mais velhos (Marino et al., 2014). Caracteriza-se pela perda irreversível e gradual da função dos néfrons, levando a diversas complicações, dentre elas, aos distúrbios do metabolismo mineral e ósseo (Locatelli et al., 2002). O manejo nutricional com o uso de alimento coadjuvante para doentes renais crônicos constitui uma importante estratégia para a prevenção e controle dos distúrbios ósseo-minerais, devido aos seus teores reduzidos de fósforo. Entretanto, alguns estudos recentes indicam que possa haver uma relação entre a intensidade de restrição fosfórica e o desenvolvimento de hipercalcemia em gatos (Schauf et al., 2021), o que poderia implicar em efeitos deletérios renais.
A hipercalcemia pode exercer influencia sobre a taxa de filtração glomerular, ao reduzir a tonicidade medular e o fluxo sanguíneo renal (Levi et al., 1983). Além disso, aventa-se se a hipercalcemia poderia ser prejudicial aos pacientes com DRC devido à mineralização vascular e renal, hipótese esta ainda a ser comprovada. A mineralização vascular é um processo facilitado pela diferenciação osteocondrogênica e apoptose de células musculares lisas vasculares e degradação da elastina. Já em relação à mineralização renal, foi reportado, em estudo retrospectivo, que a hipercalcemia é fator de risco para nefrocalcinose (Tang et al., 2022). Ainda, a hipercalcemia leva à hipercalciúria, que é considerada o principal fator de risco para urolitíase de oxalato de cálcio (Lulich et al., 2004), podendo causar obstrução do trato urinário e injúria renal aguda (Geddes et al., 2023). Entretanto, mais estudos são necessários para investigar se o aumento do cálcio total (Cat) exerce efeitos deletérios sobre a função renal como consequência de nefrocalcinose e nefrolitíase (Tang et al., 2022).
Diante disto, a presente revisão de literatura busca debater questões quanto aos teores “ideais” de fósforo, bem como da relação Ca:P na composição do alimento coadjuvante para nefropatas, e a recomendação para o momento de sua preconização.
Teores dietéticos reduzidos de fósforo em gatos com DRC azotêmica
No contexto do manejo nutricional da DRC, o teor dietético reduzido em fósforo é um importante pilar no tratamento de gatos com esta condição (Tang et al., 2021). Enquanto um alimento restrito em fósforo possui teores do mineral abaixo do recomendado para gatos pelo Conselho Nacional de Pesquisa ou Federação Europeia da Indústria de Alimentos para Animais de Estimação, um alimento baixo no mineral tem os teores no limite inferior dessa recomendação. As diretrizes atuais da Sociedade Internacional de Interesse Renal (IRIS) recomendam a instituição do alimento coadjuvante para os nefropatas crônicos a partir do estádio 2, com o objetivo de manter o fósforo sérico em valores de 2,7 a 4,6 mg/dl (IRIS, 2023). Desde 2023, a IRIS também recomenda a preconização de tal alimento em pacientes normofosfatêmicos, cujos valores do fator de crescimento de fibroblastos 23 (FGF-23) excedam 400 pg/ml, na ausência de hipercalcemia, anemia ou doença inflamatória acentuada (IRIS, 2023).
O FGF-23 é produzido por osteócitos e osteoblastos em resposta à sobrecarga de fosfato e exerce atividades fosfatúricas ao interagir com o complexo Klotho-FGFR, gerando redução na expressão do cotransportador NaPi-2a nos túbulos renais. Essa sinalização também gera aumento da quantidade de receptores TRPV5 nos túbulos renais distais, resultando na maior reabsorção de cálcio (Erben e Andrukhova, 2017).
Assim, a recomendação do alimento coadjuvante baseada nos valores de FGF-23 é justificada pelo fato do fósforo sérico poder estar dentro da referência por mecanismos compensatórios, enquanto os distúrbios ósseo-minerais já ocorrem, com a redução da vitamina D3, e o aumento do FGF-23 e PTH (Stockman et al., 2021). Entretanto, estudos que observaram a ocorrência de hipercalcemia após alimento com teor reduzido em fósforo levantaram questionamentos sobre o melhor momento para a introdução do alimento coadjuvante para doentes renais crônicos em gatos.
O primeiro estudo que reportou esse fenômeno data de 1999. No referido estudo, 15 gatos com DRC receberam dieta com fósforo de 0,75-1,02 g/1000 kcal e relação Ca:P de 1,65. Apesar de, como um todo, os gatos não terem desenvolvido hipercalcemia, foi identificada hipercalcemia total e ionizada em dois gatos, sem outra causa óbvia nos exames de rotina. Dentre esses casos, um deles necessitou que o alimento fosse imediatamente suspenso, devido às manifestações clínicas de fraqueza e tremores musculares. Os níveis de Cat, então, diminuíram de 3,60 mmol/l (referência de normalidade de 2,14-2,70 mmol/l) para 2,54 mmol/l, ao final de 8 semanas (Barber et al., 1999).
Assim, o desaparecimento progressivo da hipercalcemia após a retirada do alimento reduzido em fósforo e de alta relação Ca:P aventa a hipótese de que esta ocorrência tenha sido relacionada a fatores dietéticos (Barber et al., 1999). A fundamentação desta hipótese seria de que a maior relação Ca:P dietética levaria a uma ligação reduzida do cálcio com o fósforo no trato gastrointestinal e, por conseguinte, ao aumento da absorção do cálcio intestinal (Geddes et al., 2021). Foi proposto, ainda, que a menor composição de fibra bruta e total do alimento também contribuiria para a menor ligação do cálcio e fósforo, ao reduzir o tempo de trânsito gastrointestinal (Shah et al., 1980).
Além disso, é importante pontuar as diferenças entre os dois gatos observados, sendo que, naquele que apresentou sinais clínicos de hipercalcemia, a DRC era inicial, com normofosfatemia. Já no segundo caso, a perda de função renal era mais importante, com hiperfosfatemia significativa. (Barber et al., 1999).
Essa diferença foi examinada em estudo retrospectivo recente, que envolveu 54 gatos no estádio 2 e 17 no estádio 3 (n = 71), alimentados com dietas com relação Ca:P de 1,3 a 1,9, e reduzidas em fósforo (0,7-1,1 g/Mcal) (Tang et al., 2021). Nele, os animais foram subdivididos em dois grupos, “tendência ao aumento do Cat” versus “sem tendência ao aumento do Cat”, dentro dos primeiros 200 dias após a introdução do alimento com o perfil mineral supracitado (Tang et al., 2021). Observou-se, então que, as concentrações séricas de dimetilarginina simétrica (SDMA), FGF-23, Cai e creatinina tiveram aumento significativo naqueles com tendência ao aumento do Cat, em comparação ao outro grupo (Tang et al., 2021). SDMA e creatinina refletem indiretamente a taxa de filtração glomerular, e seu aumento significativo, maior do que para o outro grupo, pode mostrar um maior prejuízo da função renal nesse grupo (Tang et al., 2021). Outro resultado interessante desse estudo foi que gatos com menores concentrações plasmáticas de fósforo antes da introdução do manejo dietético, tiveram maior risco para o aumento dos valores de Cat (Tang et al., 2021).
Pode-se inferir, então, que a introdução do alimento coadjuvante, com teores restritos de fósforo, leva ao desenvolvimento de hipercalcemia, ao longo do tempo? Infelizmente, o delineamento retrospectivo do estudo não permitiu responder de forma adequada a esta pergunta, embora seus resultados tenham levantado importantes questões quanto ao manejo nutricional de gatos com DRC.
Teores dietéticos moderados de fósforo em gatos com DRC azotêmica
Com o objetivo de identificar os efeitos de uma dieta com teores moderados de fósforo em pacientes com DRC azotêmica e hipercalcemia ionizada, foi realizado um estudo com 21 gatos; nesse estudo, os gatos faziam uso prévio de alimento coadjuvante com 0,8 g/1000 kcal de fósforo e Ca:P de 1,9, sendo subdivididos em dois grupos: aqueles que já apresentavam hipercalcemia ionizada antes de consumirem a dieta, e aqueles que passaram a apresentar hipercalcemia somente após a instituição do alimento (Geddes et al., 2021). Ambos os grupos foram então submetidos à dieta moderada em fósforo (1,5 g/1000 kcal; Ca:P de 1,3), sendo observada redução significativa do Cai e Cat no grupo que desenvolveu hipercalcemia ionizada somente após o uso da dieta com teores reduzidos em fósforo. Nesse mesmo grupo, verificou-se que a dieta com teor moderado de fósforo não alterou significativamente os níveis séricos de fósforo e FGF-23. Entretanto, resultado diferente foi obtido nos animais com hipercalcemia ionizada prévia, em que não houve redução significativa dos valores de Cai e Cat com a troca da dieta (Geddes et al., 2021).
De acordo com os resultados do estudo supracitado, a substituição do alimento com teores reduzidos em fósforo, por aquele com teores moderados, normalizou apenas os níveis de cálcio dos gatos que desenvolveram hipercalcemia ionizada somente após a introdução do alimento coadjuvante para nefropatas crônicos e, portanto, com teores reduzidos em fósforo. Tais achados demonstram que provavelmente há diferenças na etiopatogenia da hipercalcemia nesses casos (Geddes et al., 2021).
Um outro estudo prospectivo, de 2024, relatou resultado semelhante: 10 gatos com hipercalcemia ionizada, sendo três com DRC azotêmica concomitante, que recebiam dieta prévia de relação Ca:P maior que 1,4 e/ou teor de cálcio maior do que 2 g/1000 kcal, tiveram redução significativa dos níveis séricos de Cai, ao realizar a troca para dieta com relação Ca:P menor que 1,4 (Erlich et al., 2024).
Teores dietéticos moderados de fósforo em gatos com DRC inicial
O estudo de Schauf et al. (2021), em um modelo de estudo de casos longitudinal, investigou as respostas dos gatos com DRC nos estádios 1 e 2, com fósforo e FGF-23 séricos dentro da referência de normalidade, ao variar o teor de fósforo e relação Ca:P na dieta. Esse estudo, portanto, buscou uma abordagem diferente dos estudos anteriores, ao estudar gatos com DRC em estádios iniciais. Inicialmente, como observado em outros estudos, a dieta seca reduzida em fósforo (0,84 g/1000 kcal, Ca:P de 1,9), foi associada à hipercalcemia total e ionizada. Ao se trocar a dieta para um alimento seco e úmido moderado em fósforo (1,4 – 1,6 g/1000 kcal, Ca:P 1,4 – 1,6), houve resolução da hipercalcemia. Com isso, o estudo trouxe alguma evidência para a preconização de dieta com teor moderado de fósforo para gatos no estádio inicial (Schauf et al., 2021).
O quadro a seguir apresenta os estudos discutidos nesta revisão, seus respectivos modelos e desfechos (Quadro 1).
Considerações finais
Diferentes estudos têm demonstrado o desenvolvimento de hipercalcemia total e ionizada após a instituição de alimento com teor reduzido em fósforo e alta relação Ca:P em gatos doentes renais crônicos. Ainda, tem se discutido os possíveis benefícios do uso de alimento coadjuvante com teor moderado de fósforo e menor relação Ca:P em gatos com DRC inicial. A compreensão da fisiopatologia da hipercalcemia em gatos pode ser útil na melhoria do manejo dietético de felinos com DRC e na determinação do melhor momento para introduzir o alimento coadjuvante para o tratamento da doença renal crônica.
Para o diagnóstico da hipercalcemia, as concentrações de Cat são frequentemente mensuradas, dada a difusão e disponibilidade da técnica laboratorial nas rotinas dos serviços, em detrimento ao cálcio ionizado (Cai), que é a fração biologicamente ativa, e, portanto, superior na avaliação do status desse eletrólito. A mensuração do Cat, no entanto, apresenta baixa sensibilidade para identificar a hipercalcemia ionizada; desta forma, é possível que, na prática clínica, a ocorrência de hipercalcemia em gatos seja subdiagnosticada, contribuindo para injúrias estruturais e disfunção renal.
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