Orientador(a): Thiago Henrique Annibale Vendramini
Instituição: Universidade de São Paulo
Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.
Índice
Resumo
O desperdício alimentar humano ocorre no final da cadeia produtiva. Desta forma, os consumidores são uma importante variável no quadro de desperdício doméstico. Certos autores declaram que o consumo crônico de alimentos acima das necessidades fisiológicas humanas deve ser considerado como desperdício metabólico. Portanto, o presente estudo buscou realizar uma primeira abordagem sobre a temática em cães e gatos brasileiros. Para tal, foram desenvolvidos um alimento modelo para cães e um para gatos, por meio da realização da média aritmética simples da composição química de 150 alimentos comerciais para cães e 100 para gatos. Os preços observados em lojas virtuais foram utilizados para calcular o custo médio de aquisição dos produtos. Procedeu-se com a elaboração de modelos caninos e felinos obesos, que se baseou na avaliação retrospectiva de 3212 prontuários de um hospital veterinário. No total, as informações de 311 cães e 46 gatos obesos foram utilizadas para aferição do peso corporal, escore de condição corporal e escore de massa muscular médios. Os modelos para cães em sobrepeso e em peso ideal foram calculados a partir do modelo obeso, com base nas diretrizes de Laflamme (2006). A necessidade energética de manutenção foi calculada com base nas equações propostas pelo FEDIAF (2021). Os consumos totais de alimento foram baseados na energia metabolizável dos alimentos calculados, na população brasileira de cães e gatos em 2022 e nas prevalências de sobrepeso e obesidade canina obtidas por Porsani et al. (2020) e felina obtidas por Courcier et al. (2010). A diferença entre o consumo total estimado e o consumo hipotético de uma população integralmente em peso ideal foi caracterizado como desperdício. De forma geral, são desperdiçadas 1.791,48 toneladas de alimento por dia. A fração energética destas dietas seria suficiente para o consumo diário de outros 3,46 milhões de gatos e 8,85 milhões de cães. Ademais, foram realizadas extrapolações nutricionais sobre o consumo de alimentos e serviços humanos. Diante do exposto, este estudo concluiu sobre a importância em discutir o excesso de peso em cães e gatos sobre perspectivas ambientais, ecológicas e sociais.
Palavras-chave: caninos, consumo sustentável, felinos, nutrição, obesidade.
Introdução
A definição do termo desperdício alimentar não é tão simples quanto parece. De acordo com a FAO (2019), o desperdício ocorre quando alimentos próprios para consumo são submetidos a perda em sua qualidade ou quantidade por varejistas, serviços de alimentação ou consumidores. Estima-se que além do custo estimado de um bilhão de dólares por ano, decorre do desperdício alimentar custos adicionais considerados ocultos de 700 mil milhões de dólares para o meio ambiente e 900 mil milhões de dólares para a sociedade (FAO, 2019).
Com o aumento do nível global de obesidade, um elevado número de pessoas consome, cronicamente, alimentos além das necessidades fisiológicas recomendadas. Apesar da definição atual de desperdício alimentar não incluir a sobrenutrição como uma de suas causas, o conceito de que o consumo excessivo e desbalanceado de alimentos caracteriza tal situação é crescente na medicina humana (Aschemann-Witzel, 2016; Serafini; Toti, 2019; Franco et al., 2023). Neste sentido, uma parcela do impacto global gerado pelo desperdício alimentar está relacionada ao ganho e manutenção de gordura corporal em excesso.
O World Obesity Atlas publicado em 2023 estima que, em 2035, metade da população mundial estará acima do peso (Lobstein et al., 2023). Caso consolidado tal cenário, o sobrepeso e a obesidade humana representarão um custo de, aproximadamente, quatro trilhões de dólares para a economia global.
A obesidade em cães e gatos segue esta tendência, visto que é considerada há muitos anos como a principal doença nutricional nos animais de companhia (German, 2006). O desequilíbrio energético prolongado, caracterizado pelo superávit calórico, resulta no desenvolvimento da obesidade (Cline et al., 2021). Tal acúmulo anormal de tecido adiposo, formado por adipócitos brancos, leva a um estado clínico de comprometimento da saúde geral e sistema imunológico e distúrbios metabólicos (Zoran et al., 2010).
Avaliações da sobrenutrição sobre problemas de saúde relacionados com o sobrepeso e a obesidade canina e felina são bastante presentes na literatura científica. Contudo, a discussão sobre sua contribuição e demais implicações ao que tange o desperdício de recursos, nunca foi levantada. Diante do exposto, foi realizada uma estimativa preliminar sobre o consumo alimentar excedente por cães e gatos em sobrepeso e obesos no Brasil e maiores reflexos e ponderações de equivalência sobre a temática de desperdício.
Material e métodos
Para este ensaio, assumiu-se que todos os cães e gatos são alimentados de forma integral com uso de alimento comercial extrusado seco. Desta forma, uma vez que são disponíveis no mercado uma ampla gama de produtos, buscou-se a elaboração de um alimento médio para cães e outro para gatos. Para este propósito, foram consideradas as composições químicas de 150 alimentos comerciais destinados aos cães e 100 alimentos comerciais destinados aos gatos. Apenas alimentos de classificação Premium ou Super Premium e formulados para cães e gatos adultos ou seniores saudáveis foram incluídos. A composição química dos alimentos modelos foi estimada por meio da média aritmética simples dos teores obtidos dos rótulos supracitados. Foram consideradas as médias de preços observadas em três lojas virtuais de comércio pet de alta relevância para o cálculo do preço de aquisição médio dos alimentos modelos.
Para possibilitar os cálculos e estimativas deste estudo, procedeu-se com a elaboração de um modelo brasileiro de cão e gato obesos. Para tanto, foi realizada avaliação retrospectiva de 3213 prontuários de pacientes atendidos durante a rotina clínica de um hospital veterinário entre 2012 e 2023. Foram selecionados 311 cães obesos e 46 gatos obesos, em escore de condição corporal 8/9 ou 9/9 (Laflamme, 1997), de diferentes idades, raças, portes e status reprodutivo. Foram calculados o peso corporal, idade, escore de condição corporal e escore de massa muscular (Michel et al., 2011) por meio da média aritmética simples do rol de dados coletados.
Ademais, conforme Laflamme (2006), estima-se que para cada ponto acima de 5 no escore de condição corporal os animais apresentem incremento de 10 a 15% em seu peso corporal. Portanto, os pesos médios de cães e gatos em sobrepeso e condição ideal foram calculados por meio da redução mínima de 10% a cada diminuição pontual no escore de condição corporal.
Baseado no peso corporal médio obtido para cães e gatos obesos, em sobrepeso e peso ideal e na energia metabolizável dos alimentos modelos, foi calculada a necessidade energética de manutenção diária dos animais. Para tal, foram utilizadas as equações preditivas para cães e gatos adultos com baixo nível de atividade física, propostas pelo FEDIAF (2021):
Necessidade energética de manutenção diária de cães = 95 kcal x peso corporal0,75 Necessidade energética de manutenção diária de gatos = 63,5 kcal x peso corporal0,67
O consumo alimentar médio foi obtido por meio da divisão entre as necessidades energéticas calculadas e a energia metabolizável dos alimentos modelos.
A população brasileira de cães e gatos utilizada nos cálculos foi baseada no último relatório sobre o mercado pet brasileiro, disponibilizado pela Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (ABINPET, 2023). Como forma de estimar a parcela de cães obesos, em sobrepeso e peso ideal do Brasil, foram utilizadas as prevalências percentuais evidenciadas no estudo de Porsani et al. (2020), realizado na cidade de São Paulo. Uma vez que não existem estudos relevantes de prevalência para a obesidade e sobrepeso em gatos brasileiros, as subpopulações foram calculadas por meio dos percentuais demonstrados por Courcier et al. (2010). Ambos os resultados dos estudos supracitados foram extrapolados como a prevalência média em todo o território brasileiro.
Por fim, foi estimado o consumo total de uma população hipotética, composta apenas por cães e gatos em peso ideal. Ademais, os consumos individualizados das subpopulações obesas, em sobrepeso e peso ideal foram obtidos por meio da multiplicação entre o número de habitantes e a ingestão dietética estimada. A diferença entre o consumo total da população estimada e hipotética foi caracterizado como o desperdício causado pela obesidade e sobrepeso.
Resultados
Os primeiros dados calculados foram as composições químicas e preços de aquisição médios dos alimentos (Tabela 1).
Em sequência, foram obtidos os modelos brasileiros de cães e gatos obesos, que contemplou o escore de condição corporal, necessidade energética e consumo alimentar médios (Tabela 2). As estimativas para cães em sobrepeso e em peso ideal foram calculadas com base nos respectivos modelos obesos.
Ademais, foram obtidas as estimativas para cada população específica de cães e gatos. Os respectivos consumos estimados e hipotéticos foram utilizados para calcular o desperdício alimentar causado pelo excesso de peso (Tabela 3).
Os dados de desperdício estimados foram concentrados em um infográfico, no qual foram apresentadas ponderações de desperdício nutricional com base nos teores químicos dos alimentos modelos (Figura 1).
Figura 1. Infográfico do desperdício alimentar e nutricional causado pelo excesso de peso.
Discussão
O modelo animal e alimentar, bem como a avaliação das calorias consumidas em sobrenutrição, foram fundamentados pelo conjunto de pressuposições supracitadas e baseados em estudos de prevalência e casuística, que podem mudar em função do tempo e região. Optou-se pela estimativa de um modelo brasileiro de cão e gato obesos por conta da natureza clínica-hospitalar dos dados coletados, o que poderia enviesar o cálculo de um modelo em peso ideal.
A posição dos autores em classificar a sobrenutrição como desperdício foi pautada na associação entre o excesso de peso e a redução no bem-estar, longevidade, qualidade de vida e aumento na predisposição de inúmeras doenças em cães e gatos (German, 2006; German et al., 2012; Salt et al., 2019). Além disso, o montante energético desperdiçado seria suficiente para suprir a demanda diária de 13% da população canina e 10% da população felina atuais. As porções nutricionais estimadas e apresentadas como desperdício podem ser extrapoladas para produtos e serviços humanos, como forma de melhor visualização (Figura 2).
Figura 2. Ponderações de equivalência entre nutrientes desperdiçados diariamente pelo excesso de peso em cães e gatos e serviços e produtos humanos.
É importante ressaltar que muitos ingredientes utilizados na formulação de alimentos para cães e gatos são subprodutos do setor alimentício humano. Desta forma, as equivalências foram utilizadas neste estudo como medidas de grandeza. Estima-se que o consumo alimentar humano seja responsável por mais de 60% das emissões de gases de efeito estufa (Ivanova et al., 2016). Portanto, a busca por hábitos de consumo sustentáveis é uma forte tendência. No entanto, esta temática é pouco abordada na nutrição dos cães e gatos brasileiros. Os resultados obtidos nesse ensaio jogam luz e visam ampliar a discussão do problema.
Conclusão
Este estudo descreve que o aumento da adiposidade populacional de cães e gatos implica em desperdício de recursos. O consumo alimentar excedente tem consequências de considerável relevância e determinadas equivalências impactantes na temática do desperdício alimentar brasileiro. De toda forma, são e ainda serão, objetivos de estudo a relação entre o padrão de consumo exagerado na nutrição de cães e gatos e suas consequências ambientais, ecológicas e sociais.
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