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Revisão sobre hiperlipidemia em cães: um olhar terapêutico

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Autor(a): Péter de Lima Wachholz

Orientador(a): Mariana Cristina Hoeppner Rondelli

Instituição: Universidade Federal de Pelotas

Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

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Índice

Resumo

A hiperlipidemia é o aumento das concentrações séricas de colesterol, triglicerídeos ou ambos, que é frequente em cães e pode ser assintomática, portanto, que requer diagnóstico e tratamento adequado para evitar complicações. A hiperlipidemia tem sido associado a diversas alterações como resistência insulínica, pancreatite, lipemia retineana, epilepsia, xantoma cutâneo, além de interferência pré-analítica em exames complementares. Pode ser classificada como primária ou secundária. O tratamento das hiperlipidemias é alcançado com diagnóstico e tratamento adequados da causa primária, quando houver, e a utilização de alimentos com baixo teor de gordura. Em casos graves ou com resposta inadequada ao tratamento, a utilização de nutracêuticos ou fármacos hipolipemiantes é necessária. Neste sentido, esta revisão é atualizar os colegas veterinários sobre os tratamentos atuais indicados para esta disfunção em cães.

Introdução

Hiperlipidemia é uma condição frequente em cães. Por muito tempo acreditou-se que era uma condição benigna. Porém, experiência clínica e estudos nessa área eram limitados (XENOULIS e STEINER, 2010). Nos últimos anos, houve avanço com relação a trabalhos que avaliassem esta condição tanto em cães quanto em humanos, com relação ao seu diagnóstico, tratamento e associação com outras doenças (PAULIN et al., 2021) tanto no sentido de quantidade de publicações, quanto na qualidade técnica e pesquisas de ponta como a mensuração de lipoproteínas e suas frações (XENOULIS et al., 2013). Estudos ao longo dos anos mostraram achados importantes que relacionam a hiperlipidemia com pancreatite (XENOULIS et al., 2020a), resistência insulínica (XENOULIS et al, 2011) e com o perfil de lipoproteínas de cães tratados para hiperlipidemia (XENOULIS et al., 2020b; BORIN-CRIVELLENTI et al., 2021). Cães com hiperlipidemia podem ser assintomáticos por muito tempo dependendo do tipo e gravidade da hiperlipidemia, no entanto, alguns animais podem apresentar sinais intermitentes de êmese, diarreia e dor abdominal. (LARSEN e MAGGIORE, 2020).

O tratamento dietético com teor de gordura reduzido é a primeira abordagem indicada, e foi melhor avaliada mais recentemente (XENOULIS et al., 2020b; MICELI et al., 2021). O uso de fármacos hipolipemiantes com resultados promissores foi descrito por diversos autores, no uso de fibratos (DE MARCO, 2017; MICELI et al., 2021), ômega 3 (ALBUQUERQUE et al., 2021), fitosteróis (BORIN-CRIVELLENTI et al., 2021) e associação de fibrato com ezetimiba (WACHHOLZ et al., 2022).

Além das alterações clínicas observadas, a hipertrigliceridemia interfere nos resultados de uma ampla quantidade de exames como dosagem sérica de potássio, sódio, fósforo, bilirrubina, enzimas hepáticas, hormônios e outras frações de lipoproteinas, (DE MARCO, 2017; LARSEN e MAGGIORE, 2020; MICELI et al., 2021), além de facilitar a ocorrência de hemólise, portanto a hiperlipidemia é uma condição clínica que merece atenção. Neste sentido, o objetivo desta revisão é atualizar os colegas veterinários sobre os tratamentos atuais indicados para esta disfunção em cães.

Desenvolvimento

A hiperlipidemia é uma condição comum em cães e pode ser classificada como primária ou secundária a outras doenças ou ao consumo de dietas ricas em gordura. Este termo faz referência a qualquer alteração na qualidade e/ou concentração de lipídios e/ou lipoproteínas sanguíneas (XENOULIS, 2017). Hiperlipidemia se refere ao aumento da concentração de colesterol, triglicerídeos ou de ambos. A hipertrigliceridemia consiste no aumento somente de triglicerídeos enquanto o aumento de colesterol de forma isolada é denominado hipercolesterolemia.

As hiperlipidemias primárias podem estar relacionadas com o aumento de triglicerídeos como nas raças Schnauzer e Brittany Spaniel ou com o aumento de colesterol, descrito em cães das raças Collie de pelo longo, Doberman Pinscher, Rottweiler, Pastor de Brie e Pastor de Shetland (WATSON et al., 1993; SATO et al., 2000; XENOULIS e STEINER, 2010). As causas secundárias de hiperlipidemia em cães podem estar relacionadas com doenças endócrinas, nefropatia perdedora de proteína, pancreatite e obesidade (XENOULIS e STEINER, 2010; XENOULIS e STEINER, 2015).

O tratamento das dislipidemias é dividido em três etapas: tratamento da causa primária, quando houver, tratamento dietético e/ou associação com terapia farmacológica. Se o tratamento da causa primária não for suficiente para a resolução da hiperlipidemia, devem ser considerados outros diagnósticos, tratamento ineficiente ou ainda hiperlipidemia primária, ou secundária concomitante a outras causas (CATANOZI, 2015). O tratamento da hipertrigliceridemia é recomendado em valores superiores a 500mg/dL e mandatório em valores superiores a 1000mg/dL (FORD, 1996; LARSEN e MAGGIORE, 2020). A meta do tratamento de hipertrigliceridemia é manter os valores séricos abaixo de 400mg/dL (LARSEN e MAGGIORE, 2020) A hipercolesterolemia é associada com menos complicações, entretanto é indicado manter os níveis séricos inferiores a 500mg/dL (XENOULIS e STEINER, 2010)

A primeira etapa do tratamento da hiperlipidemia é a modificação da dieta. São indicados alimentos com teores reduzidos de gordura, embora ainda não se saiba exatamente a quantidade necessária de gordura que uma dieta deve conter para efetivamente manejar cães com hiperlipidemia. A maioria dos autores recomenda que contenham menos do que 25gr a cada 1000kcal de energia metabolizável (XENOULIS e STEINER, 2010). Existem opções variadas de alimentos com baixo teor de gordura disponíveis comercialmente no Brasil, porém o conteúdo de gordura é variado. Além do teor de gordura, outros fatores podem influenciar como o tipo de fonte de gordura e teor de fibra. No Brasil, existe apenas um alimento reduzido em gordura e normocalórico nas apresentações seca (extrusada) e úmida. Quanto aos alimentos hipocalóricos reduzidos em gordura (para tratamento de obesidade), há mais opções nas mesmas apresentações (secas e úmidas).

Neste sentido, Xenoulis et al. (2020) avaliaram a eficácia do tratamento dietético com 18,6gr de gordura em 1000kcal em cães da raça Schnauzer miniatura com hipertrigliceridemia e observaram que foi eficaz em reduzir os níveis de colesterolemia e trigliceridemia após 8 semanas de tratamento dietético. Este alimento está disponível no Brasil, em versões seca e úmida para cães.

Se o tratamento dietético for eficaz em manter a trigliceridemia menor que 500mg/dL, então o alimento deve ser continuado até que a causa secundária seja estabilizada, ou mantida pelo resto da vida em cães diagnosticados com dislipidemia primária. São indicadas reavaliações a cada 6 a 12 meses. Se a resposta ao tratamento não for adequada, pode ser utilizada alimentação caseira ou natural com teores muito baixos de gordura (ultra low fat), com 10-12gr de gordura em 1000kcal ou associação com tratamento medicamentoso (XENOULIS e STEINER, 2010). As dietas caseiras com teores muito reduzidos de gordura não foram avaliadas sistematicamente em cães e deve-se ter cautela em elaborar dietas balanceadas (XENOULIS e STEINER, 2015).

O ômega 3 é um ácido graxo essencial que não pode ser sintetizado pelos mamíferos e deve ser obtido a partir da dieta. Os ácidos graxos são cadeias de hidrocarbonos com número par de carbonos. A quantidade de carbonos junto com a quantidade de ligações duplas e a localização destas ligações, definem a estrutura e a função destas substâncias (FREEMAN, 2010). Existem várias formas de ômega 3, mas as principais são o ácido eicosapentaenoico (EPA), docosahexaenoico (DHA) e alfa-linolêico (ALA).

O mecanismo de ação do ômega 3 no controle lipídico é complexo e ainda não é completamente entendido, contudo podem ser atribuídos a regulação de fatores de transcrição relacionados com a lipogênese, aumento da β-oxidação, aumento da atividade da enzima lipase lipoproteica, diminuição da absorção de colesterol e redução da concentração de ácidos graxos não esterificados, diminuição da absorção de glicose e lipídios, e aumento da secreção de colesterol pela bile (TOTH et al., 2009; BACKES et al., 2016). Um estudo realizado por Albuquerque et al. (2021) em que foram utilizadas doses de 58,8mg/kg EPA e 45,4mg/kg DHA mostrou ser eficaz para a redução de colesterol e triglicerídeos de cães da raça Schnauzer diagnosticados com hiperlipidemia primária.

Em humanos, cães e gatos, são citados alguns efeitos adversos decorrente da suplementação de ômega 3 em altas doses como diminuição da atividade plaquetária, distúrbios de coagulação, êmese e diarreia (LENOX e BAUER, 2013). No entanto, parecem ser pouco frequentes ou raros. No estudo realizado por Albuquerque et al. (2021), que avaliou o uso de ômega 3 durante 90 dias em cães da raça Schnauzer, não foram relatados efeitos adversos. Curiosamente, os tutores declararam sentir odor forte de peixe durante as administrações.

Os fitosteróis são compostos gordurosos derivados de plantas utilizados em medicina para reduzir a absorção de colesterol, diminuindo a concentração sérica de lipoproteínas de muita baixa densidade (VLDL) (BREDA, 2010). Em um estudo recente realizado por Borin-Crivellenti et al. (2021) em que foi avaliado o efeito de fitoesterol em cães saudáveis não hiperlipidêmicos, observou-se que a administração de 1300mg/cão durante 15 dias foi capaz de reduzir os níveis de lipoproteínas de baixa densidade (LDL) e aumentar as concentrações de lipoproteínas de alta densidade (HDL). Embora os resultados iniciais sejam promissores, mais estudos são necessários, principalmente em cães com hiperlipidemia.

Os derivados do ácido fíbrico ou fibratos são fármacos que modulam o metabolismo lipídico ativando receptores nucleares de proliferação dos peroxissomas-alfa (PPAR-a). Assim, os fibratos estimulam a oxidação hepática de ácidos graxos livres, reduz a síntese de colesterol e, consequentemente, de VLDL. A ativação de receptores nucleares induz a expressão do gene da lipase lipoproteica, promovendo a hidrólise dos triglicerídeos. Portanto os fibratos agem reduzindo a síntese de VLDL e aumentando a hidrólise dos triglicerídeos. Os principais exemplos são bezafibrato, fenofibrato, ciprofibrato e genfibrozila (SILVA, 2014; DE MARCO, 2017; MICELI et al., 2021; GONZÁLES et al., 2023).

Diversos estudos foram realizados com os fibratos em cães nos quais os resultados foram expressivos na resolução da hipertrigliceridemia e da hipercolesterolemia. De Marco et al. (2017) utilizaram o bezafibrato na dose aproximada de 6mg/kg/dia durante 30 dias em cães que apresentavam dislipidemia e foi observada melhora importante dos níveis de colesterol e triglicerídeos até o final do tratamento. Já em um estudo realizado por Miceli et al. (2021) em que o fenofibrato na dose de 10mg/kg/dia foi administrado a cães com dislipidemia durante 30 dias, houve redução significativa dos níveis de colesterol e triglicerídeos ao final do tratamento. A genfibrozila era um dos principais fibratos utilizados no tratamento de dislipidemia em cães no passado (XENOULIS e STEINER, 2015), contudo, pela experiência de alguns autores, parece ser menos eficaz do que os citados anteriormente e não existem estudos avaliando a sua segurança.

Efeitos adversos relatados relacionados aos fibratos em humanos incluem dor abdominal, êmese, diarreia e alterações bioquímicas hepáticas (LARSEN e MAGGIORE, 2020). Nenhum dos animais submetidos ao tratamento com bezafibrato ou fenofibrato durante 30 dias apresentou efeitos adversos nos estudos mencionados (DE MARCO et al., 2017; MICELI et al., 2021).

Os efeitos do ezetimiba na redução de colesterolemia em humanos já é bem estabelecido. Age na redução da absorção de colesterol provenientes das vias exógena e endógena. O ezetimiba se liga aos receptores Niemann-Pick C1- Like (NPC1L1) inibindo a absorção de colesterol (YAMASHITA et al., 2015).

Os NPC1L1 são receptores transmembranas localizados na superfície apical de enterócitos do intestino delgado, onde ocorre a maior parte do transporte do colesterol para o interior do enterócito (ALTMANN, 2004). Nos cães, estes receptores são expressos em grande quantidade no intestino delgado e fígado (TEMEL, 2007). Um estudo com esta medicação na dose de 0,007mg/kg em associação com sinvastatina (inibidores da HMG-CoA redutase) mostrou resultados favoráveis na redução dos níveis séricos de colesterol em cães (DAVIS JR. et al., 2001).

Anedoticamente, o ezetimiba é utilizado no controle de dislipidemias em associação com outros fármacos hipolipemiantes como os fibratos (WACHHOLZ et al., 2022). Em um estudo recente com 23 cães com hiperlipidemia, o uso de ezetimiba foi avaliado, associado ou não ao uso de dieta com baixo teor de gordura, por 30 dias, observando-se redução significativa dos valores de colesterol sérico em 16 cães tratados com o fármaco (WACHHOLZ, 2024).

Nos estudos realizados em humanos, não foram observados efeitos adversos associados com a administração de ezetimiba (YAMASHITA et al., 2015). Os pacientes que receberam a medicação ou o placebo relataram os mesmos sintomas, como dor abdominal, diarreia ou flatulência. O aumento de dose, entretanto, não parece estar relacionado com aumento de manifestação dos efeitos colaterais (KOSOGLOU et al., 2005).

Diante do exposto, outras investigações para avaliar o ezetimiba como monoterapia ou adjuvante a tratamentos já praticados em cães são necessários, principalmente para avaliar a segurança a longo prazo.

Considerações finais

O entendimento do metabolismo lipídico em cães é essencial para compreender a fisiopatologia da hiperlipidemia e a forma com que os fármacos agem na redução da concentração sérica de colesterol e triglicerídeos. Por se tratar de uma condição que por vezes cursa de forma assintomática, as dosagens de colesterol e triglicerídeos devem sempre ser realizadas nos exames laboratoriais de rotina em cães. Nos últimos anos muitos estudos sobre o tratamento desta condição foram realizados com bons resultados, mostrando que as consequências da hiperlipidemia podem ser amenizadas com o tratamento adequado, que se baseia em dieta com teor controlado de lipídio, administração de nutracêuticos e/ou de fármacos hipolipemiantes.

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