Orientador(a): Thiago Henrique Annibale Vendramini
Instituição: FZEA – USP
Trabalho classificado na 8ª Edição (2022) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.
Índice
Resumo
A coprofagia é um comportamento comum e indesejável que pode ser encontrado em caninos domésticos. As causas relacionadas a este tipo de atitude são variadas, entretanto, as consequências nutricionais são pouco estudadas apesar de estarem atreladas a possíveis alterações comportamentais e manejo destes animais. O presente estudo teve como objetivo avaliar a influência da coprofagia sobre parâmetros de digestibilidade e produtos de fermentação fecal de cães adultos saudáveis coprofágicos, em comparação aos resultados encontrados em cães não coprofágicos. Foram incluídos 12 cães no estudo distribuídos em dois grupos: grupo coprofágico (COP) composto por 6 animais coprofágicos e, grupo controle (CON), composto por 6 animais não coprofágicos. Os animais receberam uma dieta de adaptação por 28 dias, seguidos de cinco dias para coleta de fezes e avaliação da digestibilidade e escore fecal, e dois dias de coleta para análise das concentrações de produtos de fermentação fecal: pH fecal, ácido lático, amônia e ácidos graxos de cadeia curta e ramificada. Após a verificação das premissas estatísticas, foi realizada análise de variância pelo PROC MIXED no programa SAS e foram considerados significativos valores de p<0,05. Não foram observadas diferenças entre os grupos em relação ao pH fecal (p=0,5230), ácido lático (p=0,1334), amônia (p=0,6031), ácidos graxos de cadeia curta (ácido acético, propiônico e butírico; p>0,05) ácidos graxos de cadeia curta e ramificada (ácido valérico, isovalerico e isobutírico; p>0,05), produção fecal (p=0,9581) e escore fecal (p=0,7143). Já com relação aos coeficientes de digestibilidade aparente dos nutrientes, observou-se diferença apenas para os extrativos não-nitrogenados (p=0,0408), com valores superiores no grupo coprofágico. As conclusões da presente pesquisa apontam que o comportamento coprofágico em cães saudáveis não influenciou na digestibilidade dos nutrientes da dieta e nos produtos de fermentação fecal, aspecto importante que viabiliza o emprego desses animais em ensaios in vivo para avaliação qualitativa dos alimentos.
Palavras-chave: coprofagia, fezes, nutrição, caninos, alteração comportamental.
Introdução
A coprofagia é um hábito comum dentre os cães domésticos (DIDEHBAN et al., 2020) e poucas pesquisas sobre o tema foram desenvolvidas, principalmente acerca da influência e impactos deste comportamento na nutrição de cães. Em paralelo, as pesquisas na área de nutrição de cães e gatos avançam no entendimento do papel da alimentação sobre conceitos diversos (RADIC, 2021) e Centros de Pesquisa com frequência se deparam com a presença de cães coprofágicos, uma vez que este parece ser um comportamento aprendido, ou seja, a presença de um animal que se alimenta das fezes no grupo, pode influenciar no desenvolvimento deste ato por outros animais (AMARAL et al., 2019). Neste cenário, inexistem estudos que tenham avaliado se a ingestão de fezes pode influenciar nas variáveis avaliadas em ensaios de digestibilidade e também em estudos que determinam as concentrações de produtos de fermentação nas fezes e na caracterização da microbiota.
No cenário inverso, são empiricamente destacados que o ato coprofágico, mesmo em cães saudáveis, está relacionado à baixa digestibilidade (principalmente da proteína), que por consequência cursam com um déficit na capacidade de absorção de nutrientes da dieta.
Os poucos estudos existentes com coprofagia elucidam apenas a relação causal para coprofagia, o que demonstra escassez de informações sobre a influência da prática de ingestão de fezes na digestibilidade dos alimentos e demais parâmetros nutricionais.
Objetivos
Avaliar as concentrações dos coeficientes de digestibilidade dos nutrientes; produção, pH e escore fecal; e dos produtos de fermentação fecal: ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), ácidos graxos de cadeia curta e ramificada (AGCCR), nitrogênio amoniacal, ácido lático de cães coprofágicos em comparação a cães não coprofágicos.
Material e métodos
Animais e instalações
Foram utilizados 12 cães com peso corporal médio de 15,68kg ± 6,44, machos e fêmeas, adultos, castrados, clinicamente sadios, desverminados e vacinados. Todos os cães foram classificados em escore de condição corporal ideal (4,83 ± 0,58), segundo a escala de 9 pontos descrita por Laflamme (1997) e, escore de massa muscular ideal (3), segundo a escala de 4 pontos descrita por Michel et al. (2011).
O grupo de animais que apresentavam comportamento de coprofagia (grupo A) foi composto por seis cães coprofágicos (comportamento comprovado por prévia avaliação visual e de rotina) e o grupo B foi composto por seis animais, cujos cães não apresentavam coprofagia. Todos os animais foram manejados por seus tutores sempre com auxílio de um profissional treinado nos períodos de coleta e fornecimento dos alimentos, os animais portanto, foram mantidos em seus lares habituais e a higidez foi previamente avaliada por meio de exames físico, hemograma e bioquímicos para a avaliação das enzimas hepáticas, ureia e creatinina. Cães com alterações laboratoriais ou sinais clínicos compatíveis com doenças endócrinas e com comportamento de coprofagia por causas nutricionais ou fisiológicas não foram incluídos no estudo.
Alimento
Os cães receberam alimento comercial super premium para animais em manutenção, com ingestão monitorada diariamente. A necessidade energética de manutenção (NEM) foi determinada através da equação: 95 x PC0,75 (NRC, 2006), sendo PC o peso corporal do animal.
A composição bromatológica do alimento utilizado no presente estudo está apresentada na Tabela 1.
Protocolo experimental
Os animais dos grupos A e B foram alimentados durante o período de 28 dias para adaptação à dieta. Os cinco dias seguintes foram destinados para as coletas de fezes para determinação dos coeficientes de digestibilidade aparente dos nutrientes (CDAs) por meio do método de coleta total (AAFCO, 2020); e os dois dias seguintes para coleta de amostras de fezes frescas e de modo asséptico, para determinação das concentrações de produtos fermentativos (ácido lático, ácidos graxos de cadeia curta e ramificada, nitrogênio amoniacal e pH fecal). Ao todo, o período de experimentação de cada cão foi de 30 dias.
Análise dos produtos fermentativos
A determinação dos ácidos graxos de cadeia curta e cadeia curta ramificada foi realizada por cromatografia gasosa, segundo metodologia de Ferreira et al. (2016). Para a quantificação do nitrogênio amoniacal foi realizada a destilação em destilador de nitrogênio MICRO-KJEDAHL (Marconi MA036, Piracicaba, Brasil), conforme metodologia descrita por Vieira (1980).
O ácido lático foi mensurado segundo a metodologia descrita por Pryce (1969); e a avaliação do pH foi realizada em pH metro digital de bancada com eletrodo autônomo (STARTER 3100, PH BENCH, OHAUS São Paulo/SP). Após as coletas, as fezes foram homogeneizadas e pesadas, sendo 1 grama a quantidade necessária por amostra para a determinação do pH, diluído em 9mL de água destilada. Para a análise foi realizada a introdução direta do eletrodo em uma solução 9:1 de água destilada e fezes, mensurando-se o pH da solução, conforme metodologia adaptada de Walter, Silva e Perdomo (2005).
Determinação dos coeficientes de digestibilidade aparente dos nutrientes e escore fecal
Os coeficientes de digestibilidade aparente (CDAs) dos nutrientes das dietas foram determinados pelo método de coleta total de fezes, segundo recomendações da AAFCO (2020). Nas fezes e alimentos foram determinados, segundo a metodologia descrita pela AOAC (1995), os teores de matéria seca (MS), proteína bruta (PB), extrato etéreo em hidrólise ácida (EEHA), matéria mineral (MM) e fibra bruta (FB). Os extrativos não nitrogenados (ENN) foram calculados pela diferença entre a MS e a soma da PB, EEHA, FB e MM. Baseado nos resultados obtidos em laboratório, foram calculados os coeficientes de digestibilidade aparente de cada nutriente com a seguinte fórmula: CDAN (%) = nutriente ingerido (g) – nutriente excretado (g) / nutriente ingerido (g) x 100
O escore fecal foi avaliado de acordo com a escala publicada por Moxham (2001) ao longo do período de coleta de fezes para a digestibilidade, às quais foram atribuídas notas de 0 a 5, considerando-se ideal valores entre 2 e 3.
Análise estatística
Para análise comparativa entre os grupos A e B, os dados foram analisados pelo programa Statistical Analysis System, versão 9.4 (SAS Institute Inc., Cary, NC, EUA, 2004). Após verificação das premissas estatísticas, foi realizada análise de variância pelo PROC MIXED, considerando o nível de significância de 5% (p<0,05) de acordo com o seguinte modelo estatístico: 𝑌𝑖𝑗𝑘 = 𝑚 + 𝑇𝑖 + 𝑃𝑖 + 𝐴𝑘 + 𝑒𝑖𝑗𝑘
Em que: Yijk = variável dependente; m = média geral; Ti = efeito fixo de tratamento; Pi = efeito fixo de linha; Ak = efeito fixo de coluna; eijk = erro residual.
Resultados
Neste estudo, não foram observadas diferenças entre o grupo de cães coprofágicos e o grupo de cães não coprofágicos quanto às concentrações dos produtos fermentativos avaliados, considerando o modelo estatístico empregado e o nível de significância de 5% (p<0,05) (Tabela 2).
Em relação aos coeficientes de digestibilidade aparente dos nutrientes (Tabela 3), foi observada diferença apenas no CDA dos extrativos não-nitrogenados.
Discussão
Conforme verificado em nosso estudo não foram verificadas mudanças sobre a digestibilidade aparente dos nutrientes avaliados (exceto para os extrativos não- nitrogenados) quando o animal apresenta o hábito do consumo de fezes. O protocolo de digestibilidade utilizado preconizado pela Association of American Feed Control Officials (AAFCO, 2020) é recomendado para a determinação da digestibilidade dos nutrientes dos alimentos para gatos e cães de uma forma não prejudicial a estes animais e, preconiza período de cinco dias de coleta além do período de adaptação.
Além disso, a amônia e os produtos originados da fermentação intestinal, como ácido lático e ácidos graxos de cadeia curta e ramificada, que podem apresentar efeitos sobre o pH e características fecais (LOO et al., 2008), também não foram divergentes entre os grupos avaliados, o que aponta que o processo digestivo e a matéria fecal não absorvida pelo organismo não são alterados com o hábito/comportamento de ingestão de fezes.
Em relação a diferença observada no CDA dos extrativos não-nitrogenados. No entanto, este resultado precisa ser analisado com certa cautela, pois os extrativos não-nitrogenados foram calculados (e não determinados) pela equação ENN (%) = 100 – (Umidade + PB + EEHA + FB + MM) (AOAC, 1995), e inclui os resultados de análise de fibra bruta, cuja metodologia é falha, apesar de ainda ser aceita. A técnica subestima a quantidade de fibra presente nas amostras, diminuindo de sua amostra as frações solúveis e parte das insolúveis (CECCHI, 2003). Essa deficiência da técnica foi apontada por Oliveira et al. (2012) em estudo que avaliou diferentes alimentos para cães e gatos, quanto à composição e digestibilidade das fibras, comparando as metodologias de fibra dietética total, fibra em detergente neutro, fibra em detergente ácido e fibra bruta. Os resultados demonstraram que a análise da fibra bruta não apresentou correlação com nenhum outro método. Outro estudo (FARCAS et al., 2013) avaliou as diferenças entre os teores de fibra bruta e os teores de fibra dietética total (FDT) e, os autores concluíram que, na falta de informações a cerca do teor de fibra alimentar, a fibra bruta parece ser um indicador particularmente confiável da quantidade de fibra e composição de uma dieta para cães.
Conclusão
No presente estudo, o comportamento coprofágico não resultou em diferenças na concentração de produtos de fermentação fecal avaliados (ácido lático, amônia, ácidos graxos de cadeia curta e ramificada e pH), qualidade fecal e digestibilidade dos nutrientes, com exceção dos extrativos não-nitrogenados. Este resultado destaca que o ato coprofágico em cães saudáveis, é um hábito sem decorrências à digestibilidade e aproveitamento dos nutrientes. O estudo permite ainda o esclarecimento sobre o uso de cães coprofágicos em ensaios para avaliação qualitativa dos alimentos.
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