Orientador(a): Flávia Maria de Oliveira Borges Saad
Instituição: UFMG
Trabalho classificado na 7ª Edição (2021) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.
Índice
Resumo
A crescente demanda por opções de alimentos mais saudáveis para os animais de estimação faz com que haja uma preocupação acerca dos riscos que podem acarretar a médio e longo prazo. Esses riscos são diversos, e vão desde riscos nutricionais ao microbiológico, com potencial zoonótico. Há diversos relatos na literatura de animais com alterações metabólicas devido a um manejo errôneo e, apesar da necessidade da utilização dessa ferramenta para manejo de alguns pacientes, o uso indiscriminado das dietas alternativas podem acarretar prejuízos à saúde dos mesmos.
Introdução
A humanização dos animais de companhia faz com que muitas pessoas vejam um filho ao invés de um cão ou gato, com todas as suas particularidades e necessidades próprias de cada espécie. É crescente o número de proprietários que buscam novas alternativas alimentares para seus pets, por uma preocupação a respeito da saúde, longevidade ou apenas pelo modismo (CONNOLLY; HEINZE; FREEMAN et al., 2014). E, com o aumento da demanda por esse tipo de alimento mais saudável, em tese, aumenta-se também a disponibilidade de empresas e sites, que oferecem tanto receitas ou alimentos prontos, quanto de cursos para orientação de como preparar a comida em casa, quase sempre com orientações inadequadas e/ou incorretas (PEDRINELLI; GOMES; CARCIOFI, 2017; PEDRINELLI et al., 2019).
A associação de todos esses fatores leva a um risco potencial para a saúde dos animais, indo na direção contrária ao objetivo inicial. Ainda são poucos os estudos, em comparação com dietas comerciais, sobre o impacto da utilização de alimentos não convencionais para cães e gatos. Esse impacto pode ser tanto para o próprio animal, no sentido fisiológico, metabólico e comportamental (BUFF et al., 2014), quanto para o proprietário no quesito custo (VENDRAMINI et al., 2020) e risco microbiológico (VAN BREE et al., 2018; HELLGREN et al., 2019), e também ao meio ambiente e sustentabilidade, a partir do momento em que há uma maior demanda por alimentos voltados ao consumo humano para preparar a comida dos animais (OKIN, 2017).
Devido ao grande interesse atual sobre esse tipo de alimentação e à preocupação com os riscos inerentes a ela, torna-se importante uma revisão sistemática dos estudos existentes sobre o tema.
Desenvolvimento
Os termos “alimentação não convencional” ou “alternativa” é utilizado para definir dietas geralmente compostas por ingredientes da alimentação humana, como carnes, legumes, grãos, entre outros, seja crua ou cozida (PARR; REMILLARD, 2014). A definição também engloba dietas vegetarianas para cães e gatos (FREEMAN et al., 2011).
A busca por uma alimentação alternativa, vista como uma opção mais saudável, pode se dar pelos casos divulgados esporadicamente sobre morte de animais de estimação devido à presença de algum contaminante em rações comerciais (SAAD; FRANÇA, 2010). A possibilidade de maior controle sobre o que é oferecido a eles justifica essa busca.
Há relatos na literatura da aplicabilidade bem-sucedida com esse tipo de alimentação. Essa pode ser uma ferramenta importante no manejo de diversas doenças e comorbidades, por ser possível alterar a composição e formular de acordo com o que for mais recomendado para determinado quadro clínico (JAFFEY et al., 2020). SEGEV et al. (2010) relataram o caso de um cão apresentando doença renal crônica alimentado com dieta caseira de baixo teor de potássio que evoluiu positivamente do quadro de hipercalemia. Também foi relatado sucesso no manejo de cães com epilepsia (MASINO et al., 2019) e de um filhote de cão com insuficiência renal (GERSTNER; LIESEGANG, 2016).
Potenciais complicações do uso de dieta não convencional
Uma das maiores preocupações no que diz respeito a um alimento não convencional é o quesito nutricional. Somente a combinação de ingredientes, por mais que os macronutrientes atinjam o teor recomendado para cada espécie, não é capaz de suprir toda a necessidade nutricional dos animais, seja com relação ao teor de vitaminas, minerais e, algumas vezes, de aminoácidos (STREIFF et al., 2002). Neste caso, a suplementação adequada é necessária para tornar o alimento completo (PARR; REMILLARD, 2014).
A maioria dos relatos aponta para alterações decorrentes da deficiência de cálcio. Os ingredientes utilizados na formulação são ricos em fósforo e possuem baixo teor de cálcio e, segundo REMILLARD (2008), essa relação pode chegar a 1:10 sem a suplementação adequada com uma fonte que seja biodisponível ao animal. As alterações são vistas a longo prazo em animais adultos (DIQUÉLOU et al., 2005), porém se manifestam mais rapidamente e com consequências graves quando em filhotes (TAYLOR et al., 2009; TAL et al., 2018; DODD et al., 2019).
Mesmo quando formulada adequadamente, ainda há riscos de deficiência nutricional do paciente devido as alterações que são feitas pelos proprietários no momento do preparo e fornecimento. Halfen et al. (2017) demonstraram, através do resultado de um questionário, que cerca de 60% dos proprietários fizeram modificações na composição da dieta, sem o consentimento do responsável pela formulação, colocando em risco a saúde de seu animal. Oliveira et al. (2014) também entrevistaram proprietários que forneciam dieta caseira para seus cães e encontraram que 40% não pesavam adequadamente a quantidade prescrita, além de quase 35% não utilizarem o suplemento de maneira correta. Esses dados são alarmantes, pois apontam que, mesmo com um profissional tecnicamente capacitado para formulação, ainda há riscos de o animal apresentar alterações clínicas decorrentes de erro no manejo nutricional.
Além disso, muitas vezes o proprietário não é informado acerca do alto custo para fornecer uma dieta caseira completa, em comparação com dietas secas convencionais, e só percebe quando inicia a dieta para o animal. Este fato pode favorecer a troca dos ingredientes ou a suspensão da suplementação sem orientação adequada (VENDRAMINI et al., 2020).
Apesar de serem comumente definidos como “alimentos naturais”, o trabalho de PEDRINELLI et al. (2019) encontraram presença de chumbo, mercúrio, vanádio, cobalto e urânio, com valores acima do limite máximo tolerável, em dietas que foram produzidas a partir de receitas disponíveis na internet, tanto para cães quanto para gatos. Os resultados deste estudo com relação a análise de macro e micronutrientes também corroborou com os achados de Oliveira et al. (2014) e Halfen et al. (2017). Mais de 84% das dietas analisadas apresentaram 3 ou mais nutrientes abaixo do recomendado as espécies e nenhuma estava totalmente completa.
Outro fator deletério do uso de uma dieta caseira em relação a dieta comercial seca é o maior acúmulo de cálculos dentários, influenciando na saúde oral e sistêmica e no bem-estar do paciente (BUCKLAY et al., 2011).
As dietas cruas ou “BARF”, termo em inglês para “dieta crua biologicamente apropriada” é extremamente controversa. Uma pesquisa feita no Brasil por Viegas et al. (2020), encontrou que a maior motivação para escolherem oferecer uma dieta crua é por considera-la mais natural e não a consideravam um risco sanitário, corroborando com os resultados encontrados por MORELLI et al. (2019), na Itália.
Oferecer uma dieta crua para animais de estimação em convívio próximo aos seres humanos, acarretam risco para a saúde dos próprios pets, risco de contaminação para os proprietários, além de risco de contaminação do meio ambiente, através da eliminação dos patógenos ingeridos através das fezes (VAN BREE et al., 2018; VIEGAS et al., 2020). Esse risco aumenta caso os alimentos permaneçam por um período de tempo mais longo disponível aos animais, devido a maior temperatura a que são expostos (MORELLI et al., 2019a). Dietas comerciais, extrusadas ou úmidas, passam por um processamento térmico que reduz a carga microbiológica e, consequentemente, oferecem menos riscos nesse quesito (SCHMIDT et al., 2018; VIEGAS et al., 2020).
Um profissional, ao ser buscado para orientação para alimentação crua, deve levar em consideração todos esses riscos e a contraindicação do comitê de nutrição da associação mundial de clínicos de pequenos animais (WSAVA), deixando claro que não há estudos indicando benefícios que superem os riscos já documentados para esse tipo de alimentação (FREEMAN et al., 2013) que, além do microbiológico, há também o risco nutricional (DODD et al., 2019; MACK; KIENZLE, 2016).
Dieta não convencional para felinos
Existem poucos estudos sobre alimentos não convencionais para felinos. Um estudo realizado com filhotes de gatos na Universidade do Tennessee, nos Estados Unidos, que comparou a digestibilidade entre dietas comerciais enlatadas processadas por calor, dietas comerciais cruas congeladas e dietas cruas caseiras, encontrou como resultado uma maior digestibilidade da matéria seca, matéria orgânica, proteína bruta e energia bruta nos alimentos crus quando comparado com os alimentos processados por calor (HAMPER et al., 2016). Porém, O’halloran et al. (2019) relataram o risco microbiológico do consumo de dietas cruas, mesmo que comerciais, com potencial risco zoonótico. O grande apelo comercial dos produtos não convencionais faz com que os proprietários acreditem estar oferecendo o melhor para seus animais (O’HALLORAN; GUNN-MOORE, 2019).
Além do risco microbiológico já conhecido, a dieta crua também pode representar um risco nutricional, como descrito por Polizopoulou et al. (2005), que relataram um caso clínico de hipervitaminose A em um gato em decorrência de uma alimentação a base de fígado suíno cru por longos períodos. A melhora deste animal em questão, com alterações ósseas e neurológicas, se deu após cerca de 6 meses se alimentando de um produto convencional balanceado.
Conseguir oferecer um alimento caseiro, seja cru ou cozido, balanceado e completo para gatos, é um desafio devido à alta seletividade da espécie e a neofobia que a maioria apresenta, com dificuldades de consumir alimentos que tenham textura e consistência diferentes do que estão habituados. Isso faz com que adicionar um premix vitamínico-mineral possa diminuir a palatabilidade e, consequentemente, inviabilizar o consumo de uma dieta completa (ALEGRÍA-MORAN et al., 2019). Uma dieta incompleta e/ou apresentando excesso de nutrientes é deletério para o gato, como apresentado por NIZA; VILELA; FERREIRA (2003), em um relato de caso de um felino com deficiência de vitamina E e excesso de ácidos graxos insaturados na dieta, apresentando um quadro de pansteatite – inflamação do tecido adiposo.
Considerações finais
O crescente interesse na busca por alternativas alimentares para os pets por parte dos proprietários faz com que os profissionais da área, seja médico veterinário ou zootecnista, tenham grande responsabilidade para orientar sobre a melhor opção para o paciente, sempre levando em conta a qualidade e o atendimento às exigências nutricionais de cada espécie, tanto macro quanto micronutrientes, sendo alimento comercial ou caseiro. Há diversos trabalhos provando irregularidades e potenciais riscos à saúde com o uso de um alimento não convencional, seja por prescrição errada, preparo inadequado ou presença de patógenos. Portanto, esse deve ser indicado somente quando necessário.
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