Orientador(a): Márcio Antonio Brunetto
Instituição: FMVZ USP
Trabalho Classificado na 9ª Edição (2023) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.
Índice
Resumo
O fígado desempenha muitas funções essenciais para manter a homeostase e, afecções que comprometem as funções de um órgão como este são consideradas um desafio na prática clínica. Como principal função temos produção de bile e a metabolização dos compostos gerados durante todo o processo digestivo, que através deste provém subprodutos para metabolismo de proteína, gorduras, carboidratos, enzimas, precursores entre outros metabólitos.
As hepatopatias crônicas podem levar cães a desnutrição e, entre os fatores que influenciam nesse quadro, temos os sinais clínicos do paciente que dificultam a ingestão voluntária energética suficiente como náuseas, êmese e sinais neurológicos. Além dos fatores inerentes ao shunt, prescrições dietéticas equivocadas, principalmente quanto a ingestão proteica que, associadas a má digestão de nutrientes quando há cirrose ou hipertensão portal, agravam o quadro.
O presente relato de caso apresenta a abordagem nutricional adotada para um cão da raça Yorkshire diagnosticado com desvio portossistêmico (DP), e tem como sinais clínicos encefalopatia hepática, hipoalbuminemia e anorexia, após instituição de manejo nutricional adequado paciente evoluiu favoravelmente.
Introdução
A encefalopatia hepática é uma das alterações clínicas decorrentes de doenças que acometem a função do fígado, sendo o desvio portossistêmico (DP) uma delas. Os DP podem ser congênitos ou adquiridos ao longo da vida do animal e, são caracterizados como comunicações vasculares nas quais o sistema venoso portal apresenta um desvio e o sangue que deveria passar pelo fígado vai para a circulação sistêmica (Wallace et al., 2018). Estes desvios podem ser classificados quanto a sua localização, como intra ou extra-hepáticos e, também quanto ao vaso de origem e destino como espleno-ázigos, espleno-caval e gastroesplênico-caval. A gravidade dos sinais clínicos variam conforme o volume de fluxo desviado, grau de comprometimento da função hepática e localização do desvio (Fossum, 2006).
Quando de origem congênita, os sintomas aparecem logo nos primeiros meses de vida, podendo variar de incoordenação, desvios comportamentais, até convulsões. Alguns desvios podem ser corrigidos através de intervenção cirúrgica, que quando bem-sucedida oferece remissão parcial a total dos sintomas e melhor qualidade de vida. Em casos de complicações em que a correção não é possível, os sintomas devem ser controlados através de manejo clínico e alimentar e oferecem, em média, sobrevida de 893 dias ao animal (Greenhalgh et al., 2014). As complicações pós-cirúrgicas podem estar relacionadas a não oclusão total do vaso anômalo, hipertensão portal e formação de outros shunts porto-zigomáticos (Berent & Tobias, 2009)
Alterações bioquímicas em cães com shunt são muito comuns. Cerca de 50% dos animais apresentam hipoalbuminemia, hipocolesterolemia e hipoglicemia. Ascite é um achado raro quando na presença de um único desvio portosistêmico, porém pode acontecer quando o paciente tem hipoalbuminemia, hipertensão portal ou gastroenterite hemorrágica e o líquido geralmente tem baixa celularidade, ou seja, é um transudato (Berent & Tobias, 2009)
Material e Métodos
Animal
No presente relato de caso foi avaliado um cão macho, da raça Yorkshire terrier, de 4,6 quilos de peso corporal, escore de condição corporal 3 (1-9) (Laflamme, 1997), escore de massa muscular 1 (0-3)(Michel et al., 2011) e com 1 ano e 10 meses no primeiro atendimento nutricional. O desvio porto sistêmico extra- hepático esplênico-ázigos foi diagnosticado logo que adotado aos 4 meses de idade. Aos 11 meses de vida houve tentativa de correção cirúrgica com colocação de anel constritor ameroide, porém não houve melhora clínica do animal após procedimento. Devido a não aceitação de dieta comercial indicada para tal afecção, a tutora optou por realizar por conta própria alimento caseiro feito com arroz branco cozido, legumes variados como chuchu, cenoura, abóbora, frutas variadas e, esporadicamente, alimento úmido hipoalergênico a base de proteína hidrolisada de soja, em quantidades indefinidas, oferecidas conforme ingestão voluntária do paciente.
O animal apresentava hiporexia há 4 meses, com perda de peso progressiva no último mês (aproximadamente 400g) com evolução para anorexia há 2 dias. A tutora relatava sinais neurológicos com início há dois dias como andar compulsivo e em círculos, desequilíbrio e incoordenação motora, negava sincope, convulsão, referiu fezes pastosas e enegrecidas, escore fecal 6 (1-7) (Cavett et al., 2021) (ideal: 2 e 3), incontinência urinária, com urina amarelo ouro e volume reduzido.
Tratamento nosocomial e exames
Foi instituído tratamento suporte, fluidoterapia intravenosa para correção de desidratação na velocidade de infusão de 3mL/kg/h e antiemético citrato de maropitant na dosagem de 0,1mL/kg a cada 24 h. De acordo com os resultados de exames bioquímicos foi constatado hipoalbuminemia importante [0,8g/dL (intervalo de referência para a espécie: 2,3-3,8g/dL)] (Kaneko et al., 2008). No exame de ultrassonografia abdominal total, foram constatadas as seguintes alterações: fígado com dimensões reduzidas, contornos regulares, bordos afilados, ecogenicidade aumentada e ecotextura grosseira, vesícula biliar com paredes mais evidentes, medindo 0,18cm, estômago com parede espessa (0,35cm) e pâncreas com ecogenicidade aumentada e ecotextura grosseira, rins com ecogenicidade das corticais discretamente aumentadas e presença de áreas hiperecogênicas em recessos pélvicos de rim esquerdo, vesícula urinária com presença de cristais em quantidade acentuada e, moderada quantidade de líquido livre abdominal difuso de baixa celularidade.
O tratamento para encefalopatia hepática foi instituído no mesmo dia, com uso de lactulona (1mL, TID), S-adenosil-metionina (30mg/kg SID), ácido ursodesoxilico (65mg, SID), vitamina E (43 U.I., SID) até novas recomendações e prednisolona (1mg/kg, SID) por 7 dias.
Alimentação
Devido ao quadro de hiporexia com evolução para anorexia, foi ofertado ao animal opções de alimentos variados para avaliar aceitação e preferência. O paciente não apresentou interesse por nenhum deles e assim, foi então instituído intervenção nutricional via enteral através de sonda nasoesofágica, com reintrodução gradual de alimento (Quadro 1). O volume de alimento foi calculado para ser fornecido via sonda através da equação de estimativa da necessidade energética de repouso (NER)= 70 x Peso atual0,75 (220 kcal/dia) (NRC et al., 2006). O alimento escolhido foi um sucedâneo para cães filhotes com densidade energética de 6238 kcal/kg; 57,3g de proteína por 1000 kcal de produto e, quantidade total diária de alimento de 40g, diluídos em 80mL de água morna, divididos em 6 refeições diárias.
Em retorno 11 dias após tratamento inicial, o paciente apresentou melhora significativa. A tutora relatou que fez uso da sonda por três dias consecutivos, após esse período o paciente retirou a sonda e retornou a ingestão voluntária de alimento caseiro feito pela tutora com adição de sucedâneo comercial indicado (acrescentado na forma de pó junto com a comida). Retornou com 4,2 kg, 400g a menos que no primeiro atendimento, porém não apresentava distensão abdominal e líquido ascítico.
Foi realizada, a partir deste momento, a prescrição de dieta caseira balanceada calculada para atender a necessidade energética de manutenção (NEM) estimada pelo fator 110 (322 kcal/dia) (Yudkin et al., 2021). Os ingredientes utilizados foram arroz branco cozido, batata doce, cenoura cozida, queijo muçarela, sucedâneo comercial, óleo de soja, sal light, suplemento vitamínico e mineral. No quadro 2 está apresentada uma descrição comparativa entre a prescrição de dieta realizada durante a reintrodução gradual de alimento por via enteral, alimento caseiro prescrito e alimento comercial coadjuvante indicado ao tratamento de encefalopatia hepática.
Após 21 dias da indicação de alimento caseiro balanceado, o paciente manteve-se estável a maior parte do tempo, alerta, fora observado um episódio emético de conteúdo alimentar e um episódio de inquietação e alteração de sono e vigília.
Resultados
Após instituição do suporte nutricional adequado, conforme quadro clínico do paciente, houve evolução favorável quanto ao estado geral, alterações bioquímicas como aumento de bilirrubinas totais, diretas e indiretas e hipoalbuminemia (quadro 3).
Após intervenção nutricional assistida por meio de sonda nasoesofágica, o paciente retornou a ingestão voluntária em 72 h, desse momento em diante é importante instituir alimentação balanceada para que as necessidades nutricionais sejam devidamente atendidas.
Discussão
Nesse caso não foi possível identificar quais complicações ocorreram referentes a cirurgia de correção do shunt portossistêmico. Diante do histórico, dos sinais clínicos e exames complementares, podemos inferir que o animal apresentava-se em quadro clínico de encefalopatia hepática e, com complicações quanto a não resolução do desvio portossistêmico
Quanto ao quadro clínico do animal, é sempre importante que, independente do diagnóstico, o suporte clínico seja feito de forma imediata afim de restabelecer parâmetros vitais como hidratação adequada, pressão, temperatura e frequência respiratória e cardíaca.
Devido ao tempo prolongado de hiporexia com evolução para anorexia e a perda de peso corporal do paciente, é importante instituir intervenção nutricional visando retornar suporte energético adequado. Como o paciente não tinha interesse e ingestão voluntária de alimento, foi instituída a intervenção nutricional assistida através de sonda de alimentação nasogástrica, com reintrodução gradual pois animais em tempo prolongado de anorexia podem estar sujeitos a síndrome da realimentação (Carciofi, 2008).
Embora a hipoalbuminemia seja um achado comum em cães com shunt portossistêmico, a hipoproteinemia importante ao ponto que ocorra formação de líquido ascítico é raro, a formação de líquido livre abdominal é encontrada em animais com complicações associadas ao shunt, como hipertensão portal e cirrose, e não apenas ao shunt propriamente dito (Berent & Tobias, 2009).
Devido histórico alimentar do paciente, é possível constatar que provavelmente não havia aporte nutricional adequado, pois sua dieta era majoritariamente baseada em vegetais e frutas. Embora a restrição de proteínas seja recomendada em algumas doenças que acometem o fígado, no geral os pacientes com hepatopatias devem receber quanta proteína for tolerada, a fim de minimizar os efeitos de sua restrição e subnutrição. O manejo nutricional tem como objetivo minimizar os possíveis metabólitos que podem levar a lesões hepáticas e, ao mesmo tempo, prover aporte proteico-calórico, vitamínicos e minerais suficientes para que ocorra manutenção e regeneração do órgão lesado. É de extrema importância que as particularidades individuais sejam levadas em conta para que ocorra maior taxa de sucesso ao tratamento (Brunetto et al., 2007).
Conclusão
O manejo nutricional assistido instituído inicialmente através da sonda nasoesofágica com oferta de sucedâneo comercial foi eficaz quanto ao objetivo de estimular o paciente a retornar a ingestão voluntária de alimento, melhora da hipoalbuminemia e ao quadro clínico .O uso de alimento caseiro balanceado proporcionou melhor oferta de proteína e nutrientes, a qual até o momento mantem o quadro clínico quanto a encefalopatia hepática estável, e melhora quanto a gravidade da hipoalbuminemia apresentada no primeiro atendimento.
Sendo assim, é importante ressaltar que a intervenção precoce nutricional, e a individualização da dieta ao quadro do paciente, se torna essencial para a evolução clínica no caso da encefalopatia hepática e as complicações do desvio porto sistêmico.
Referências bibliográficas
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