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Papel da nutrologia no diagnóstico e tratamento de suspeita de enteropatia crônica responsiva a dieta em um cão – relato de caso

Logo Prêmio de Pesquisa PremieRpet
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Autor(a): Vivian Pedrinelli

Orientador(a): Fabio Alves Teixeira

Instituição: NutricareVet

Trabalho Classificado na 10ª Edição (2024) do Prêmio de Pesquisa PremieRpet®.

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Índice

Resumo

A enteropatia responsiva à dieta é uma das enteropatias crônicas mais comuns em cães, sendo responsável por até 65% dos diagnósticos deste grupo de doenças. Os sinais clínicos incluem vômito, diarréia, hiporexia e perda de peso, e o diagnóstico é realizado pelo uso de dieta de eliminação com alimento com ingredientes inéditos ou com alimento comercial a base de proteína hidrolisada, com melhora dos sinais entre duas e quatro semanas do início da dieta. O objetivo do presente relato foi descrever o caso de uma cadela jovem adulta da raça Border Collie com histórico de fezes amolecidas e perda de peso. No primeiro atendimento especializado, o animal tinha um ano de idade, com peso corporal de 10,5 kg e escore de condição corporal (ECC) 3/9. A tutora referiu histórico de fezes pastosas com presença de muco desde a adoção do animal, aos seis meses de idade. Aos oito meses de idade a tutora iniciou o fornecimento de alimento caseiro cozido, e dois meses depois passou a dar alimento caseiro com proteínas cruas. A queixa principal era de hiporexia e perda de peso, além das fezes amolecidas. Foram solicitados exames complementares (hemograma e exames bioquímicos) e ultrassonografia, e nenhuma alteração foi observada. O animal residia em cidade litorânea e foi encaminhado com suspeita de prototecose após resultado sugestivo em exame coproparasitológico, que foi descartada após cultura de fezes. Foi então prescrito alimento comercial extrusado com proteína hidrolisada como dieta de eliminação. Após cerca de 50 dias exclusivamente com o alimento comercial, o animal apresentou melhora da qualidade das fezes, sem presença de muco, e ganhou peso significativamente, passando a 11 kg de peso corporal. Após 107 dias do início do alimento com proteína hidrolisada o animal apresentou 12,6 kg de peso corporal e ECC de 4/9, estabelecendo o diagnóstico de enteropatia crônica responsiva à dieta. Assim, pode-se concluir que o médico-veterinário atuante na área de nutrologia deve ter conhecimento sobre a patogenia e tratamento de doenças relacionadas à nutrição e alimentação, como a enteropatia crônica responsiva à dieta, uma vez que a dieta de tem valor diagnóstico para esta afecção e foi efetiva em controlar os sinais clínicos apresentados no presente relato, trazendo qualidade de vida para a paciente e sua família.

Introdução

Quadros de diarreia crônica podem ter diversas causas e seu diagnóstico pode ser desafiador. São consideradas diarreias crônicas as alterações no padrão fecal por mais de três semanas que, ao se descartar causas não gastrointestinais, são estabelecidas como enteropatias crônicas (EC) (ALLENSPACH; CULVERWELL; CHAN, 2016; SIMPSON; JERGENS, 2011; WASHABAU et al., 2010). Pela sistematização investigativa atual, as EC são classificadas de acordo com sua resposta ao tratamento, sendo a EC responsiva à dieta (ECRD) a mais comum, representando até 65% dos casos (DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019; KAWANO et al., 2016) e principalmente acometendo cães jovens (DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019; KAWANO et al., 2016; VOLKMANN et al., 2017). Os principais sinais clínicos da ECRD são vômito, diarréia, hiporexia, borborigmos e/ou perda de peso (FURUKAWA et al., 2022; SIMPSON; JERGENS, 2011).

O diagnóstico da ECRD é feito primariamente por dieta de eliminação, tanto com alimento caseiro com número limitado de ingredientes inéditos, ou com alimento comercial hipoalergênico preferencialmente com proteína hidrolisada (ALLENSPACH; CULVERWELL; CHAN, 2016; DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019).

Quando as manifestações cessam após duas a quatro semanas de dieta de eliminação, o diagnóstico é confirmado (DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019; VOLKMANN et al., 2017). Assim, o manejo nutricional, nesses casos, atua não só como ferramenta de tratamento, mas também de diagnóstico.

O objetivo do presente relato foi descrever o caso de uma cadela jovem adulta da raça Border Collie com histórico de fezes amolecidas e perda de peso, com suspeita de enteropatia crônica responsiva à dieta.

Relato de caso

Um cão da raça Border Collie, fêmea castrada, de peso corporal 10,5kg, com um ano de idade, foi atendido por médico-veterinário especializado em nutrologia (D1). Durante a anamnese, a tutora relatou que adotou a cadela de canil com seis meses de idade pois ela não havia sido vendida por ser pequena para o padrão da raça. O animal residia em cidade litorânea, com acesso supervisionado à praia, com corridas na areia e entrando no mar por cerca de 2 horas por dia. A queixa principal foi de que, desde adotada, a paciente não ganhava e até mesmo perdia peso e apresentava fezes pastosas com presença de muco.

A tutora referiu cerca de 10 episódios eméticos, nos seis meses após adoção, de conteúdo alimentar digerido ou não. As fezes sempre foram amolecidas, com discreto formato cilíndrico e que deixavam resíduo no local, condizente com escore de condição fecal 2 na escala de 0 a 5 (CARCIOFI et al., 2008). Tal padrão fecal piorou quando animal recebia alimentos incomuns (mocotó, beterraba e ossobuco), e três meses antes do atendimento especializado, após ingestão de iogurte integral, o animal apresentou fezes líquidas com gotejamento e vômito com odor fecal. Na época, em exame coproparasitológico de coleta única, foram observadas estruturas semelhantes a algas Prototheca sp. e Spirogyra. Foi prescrito metronidazol (23,8mg/kg/12 horas) e sulfadimetoxina (23,8mg/kg/12 horas), por via oral por cinco dias, e fluconazol (4,7mg/kg/24 horas) por via oral por dez dias, sem resolução do quadro de fezes amolecidas após o tratamento.

No histórico alimentar, relatou-se que no canil o animal recebia alimento comercial seco extrusado para filhotes. Como a paciente não comia toda a quantidade recomendada em rótulo sem a adição de palatabilizantes, aos oito meses de idade, na época com 12,0 kg, a tutora iniciou alimentação caseira cozida sem orientação profissional com ampla variação de ingredientes, com melhora do apetite. Entretanto, aos dez meses, devido à perda de peso, chegando a 11,8 kg, a tutora buscou orientação de médico-veterinário focado em atendimentos nutricionais, o qual indicou: 250g de peito de frango cru, 30g de ovo de galinha cozido, 45g de arroz branco ou lentilha cozidos, 335g de legumes cozidos (partes iguais de cenoura, abobrinha italiana, abóbora cabotiá e vagem), 145g de brócolis ou couve-flor cozidos, 25g de fígado bovino ou de frango cru, e 3g de óleo de girassol, sem suplementação vitamínico-mineral. A composição química da dieta foi estimada no software Diet Lab (Diet Lab Ltda., São Paulo, Brasil), com banco de dados do Food Data Central (USDA, 2024), sob todas as combinações de ingredientes possíveis. Foram encontradas diversas inadequações nutricionais na dieta, descritas na Tabela 1. A energia ingerida foi estimada, com o software, entre 587 e 594 kcal/dia, equivalente a 100 kcal/kg0,75.

Após troca para alimento com ingredientes crus, a tutora relatou que o animal continuou perdendo peso e as fezes continuavam amolecidas com muco e, eventualmente, continham pedaços não digeridos de alimentos. Foram solicitados por colega ultrassonografia abdominal e exames de sangue [hemograma, glicose, ureia,  creatinina, sódio, potássio, cloro, cálcio total e iônico, fósforo, alanina

Nutrientes com potencial deficiência de acordo com a composição química estimada em software do alimento caseiro com carnes cruas oferecido ao animal do presente relato
Tabela 1 – Nutrientes com potencial deficiência de acordo com a composição química estimada em software do alimento caseiro com carnes cruas oferecido ao animal do presente relato

aminotransferase, aspartato aminotransferase, fosfatase alcalina, gamaglutamil transferase, proteína total, albumina, bilirrubina total, bilirrubina direta e indireta, colesterol total e triglicérides], nos quais não foram observadas alterações.

Em D1, ao exame físico, foram constatados escores de condição corporal (ECC) 3 em escala de 9 pontos (LAFLAMME, 1997) e de massa muscular 2 em escala de 0 a 3 (MICHEL et al., 2011), sem outras alterações. Foram prescritas 842 kcal/dia (130kcal/kg0,75, considerando aumento de 15% no peso corporal) de alimento comercial extrusado coadjuvante hipoalergênico com proteína hidrolisada para cães adultos e filhotes e energia metabolizável de 4,06kcal/g (Tabela 2), totalizando 210g/dia de alimento. A tutora foi orientada a não oferecer outros alimentos por 60 dias, incluindo petiscos, suplementos, pastas dentárias e medicamentos. Foi também solicitada cultura de fezes para investigação de prototecose, com resultado negativo.

Tabela 2 – Composição química do alimento comercial extrusado coadjuvante com proteína hidrolisada prescrito para o animal do presente relato em D1

Após 52 dias do atendimento inicial (D52), o animal teve ganho de 500g de peso corporal, pesando 11,0 kg, com ECC 3/9 e EMM 2/3. Estava aceitando toda a quantidade do alimento prescrito, porém parecia querer mais pois aguardava ao lado do comedouro ao finalizar a refeição. A tutora relatou melhora clínica, sem êmese e fezes com formato cilíndrico firme sem presença de muco (Figura 1), em escore fecal 3/5, já considerado adequado (CARCIOFI et al., 2008). Assim, foi mantido o alimento prescrito e recomendado aumento de 10% da quantidade diária para estimular ganho de peso, sendo recomendados 230 g/dia (934 kcal/dia).

Fezes amolecidas com muco aos oito meses de idade do animal; E Fezes firmes e cilíndricas após 50 dias de consumo de alimento extrusado com proteína hidrolisada
Figura 1 – (A) Fezes amolecidas com muco aos oito meses de idade do animal; (B) Fezes firmes e cilíndricas após 50 dias de consumo de alimento extrusado com proteína hidrolisada

Uma nova consulta foi realizada após 55 dias do último retorno (D107). O animal pesou 12,6 kg, com ECC 4/9 e EMM 3/3. A tutora relatou boa condição geral do animal, referiu que toda a quantidade de alimento estava sendo consumida e que o animal mantinha boa qualidade fecal. Neste momento, o diagnóstico foi estabelecido como ECRD, e o alimento e sua quantidade foram mantidos.

A evolução de peso do animal se encontra na Figura 2.

Evolução de peso do animal e os momentos de troca de tipo de alimentação
Figura 2 – Evolução de peso do animal e os momentos de troca de tipo de alimentação

Discussão

No presente relato, foi apresentado uma cadela com alterações gastrointestinais da raça Border Collie, considerada raça predisposta a enteropatias crônicas inflamatórias, com idade e manifestações condizentes com suspeita de ECRD (ALLENSPACH; CULVERWELL; CHAN, 2016; DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019; KATHRANI; WERLING; ALLENSPACH, 2011).

A suspeita diagnóstica inicial levantada por colega foi a prototecose, uma doença incomum em cães causada por algas do gênero Prototheca presentes em água doce ou salgada, solo, lodo e esgoto. O diagnóstico é feito por cultura ou presença da alga em exame citológico ou histológico (HOLLINGSWORTH, 2000). As principais manifestações são diarreia crônica com muco e hematoquezia e perda de peso, bem como febre, poliúria, polidipsia e perda de visão. O prognóstico é ruim e o animal em geral se apresenta debilitado, diferente da paciente deste relato que, apesar do baixo peso, não apresentava alterações de comportamento. A suspeita de prototecose foi levantada após exame coproparasitológico, porém a cultura foi negativa, sendo esta última o exame de escolha para o diagnóstico (HOLLINGSWORTH, 2000; RIBEIRO, 2022). Como o animal residia em região litorânea, pode ter havido contaminação da amostra pelo solo ou água salgada. O antifúngico fluconazol, que foi utilizado como tratamento no presente relato, é uma das alternativas propostas para o tratamento da prototecose, porém a resposta ao tratamento é baixa, culminando muitas vezes em óbito (RIBEIRO, 2022).

O animal desde a adoção fora acompanhado por diferentes médicos- veterinários, inclusive por profissionais da nutrição e, apesar de terem sido realizadas mudanças dietéticas, nenhuma condizia com investigação de ECRD. Em novo atendimento focado nas mudanças dietéticas e levando em consideração todo o histórico do animal, houve a suspeita de ECRD. O alimento escolhido na ocasião, por ser hipoalergênico com proteína hidrolisada, é indicado para dieta de eliminação  (ALLENSPACH;  CULVERWELL;  CHAN,  2016;  DANDRIEUX;

MANSFIELD, 2019; SIMPSON et al., 2023). Em D1, o animal já tinha um ano de idade, podendo ser considerado como fase adulta, porém pelo histórico de reduzida aceitação do alimento comercial para filhotes na época da adoção e ingestão de alimento caseiro inadequado, pode-se afirmar que o paciente estava sob deficiência energética e nutricional, o que poderia justificar o baixo peso e atraso no desenvolvimento. Além disso, o animal realizava atividade física intensa diariamente, portanto, o consumo energético diário pode ter sido ainda mais subestimado e, assim, pode ter levado à perda de peso mais expressiva no animal. A prescrição de alimento hipoalergênico que supria a necessidade nutricional de cães filhotes foi realizada na expectativa de investigar a ECRD e melhorar o status nutricional da paciente. É esperado que haja reversão da perda de peso progressiva  nos  quadros  de  ECRD,  principalmente  nos  quadros  mais característicos de diarreia de intestino delgado (fezes constantemente alteradas com perda de peso) após o início da dieta de eliminação (ALLENSPACH; CULVERWELL; CHAN, 2016; DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019; SIMPSON; JERGENS, 2011), como foi observado no presente relato.

O diagnóstico terapêutico por dieta de eliminação deve ser preferencial para casos de ECRD em pacientes sem alteração de concentrações séricas de albumina, com apetite preservado e que não apresentem alteração ultrassonográfica de doença infiltrativa (DANDRIEUX; MANSFIELD, 2019; KAWANO et al., 2016), como a paciente deste relato, que não apresentou alterações em exames laboratoriais e de imagem. A biópsia de segmentos do trato gastrointestinal, que muitas vezes é indicada em casos de EC, não auxilia no diagnóstico de ECRD, pois mesmo nos quadros de reação adversa ao alimento pode haver infiltrado celular inflamatório de diferentes categorias (WASHABAU et al., 2010). Portanto, o diagnóstico de ECRD através do uso de dieta de eliminação com alimento comercial com proteína hidrolisada pode ser considerado adequado de acordo com as recomendações atuais de literatura (MANDIGERS et al., 2010; SIMPSON et al., 2023).

O ideal seria que a paciente fosse submetida à dieta provocativa, com fornecimento de diferentes alimentos convencionais (SIMPSON; JERGENS, 2011), mas a tutora se mostrou receosa por retorno do quadro de fezes amolecidas, e no momento preferiu deixar a paciente com a alimentação atual por estar estável e em bom estado geral. Os próximos passos para a paciente são monitoramento do peso e qualidade fecal no longo prazo, além de investigação das concentrações séricas de cobalamina e folato, que podem estar reduzidas nos quadros de pacientes com EC (ALLENSPACH et al., 2007; ULLAL et al., 2023).

Conclusão

Cabe ao médico-veterinário atuante na área de nutrologia o conhecimento da patogenia e tratamento como forma de usar o raciocínio clínico para diagnóstico de doenças, principalmente as que envolvam diretamente a nutrição, como é o caso da ECRD. Com o presente relato, conclui-se que a sistematização diagnóstica, iniciada pela dieta de eliminação com alimento comercial a base de proteína hidrolisada, foi efetiva em controlar as manifestações clínicas apresentadas pela paciente com ECRD, trazendo qualidade de vida para o animal e sua família.

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