Autora: Profa. Dra. Mariana Cristina Hoeppner Rondelli – Professora Adjunto do Departamento de Clínicas Veterinárias da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Pelotas. Coordenadora do EndocrinoPeq UFPEL – Serviço de Atendimento Especializado em Endocrinologia de Pequenos Animais na Universidade Federal de Pelotas
A tireoide dos cães se localiza na região cervical e é geralmente composta por dois lobos separados, situados lateralmente à traqueia (GRECCO, STABENFELDT, 2004). As glândulas tireoidianas produzem os hormônios tiroxina e triiodotironina sob o comando das glândulas hipotálamo e hipófise, e em resposta à própria produção tireoidiana (FELDMAN, NELSON, 2004). Estes hormônios possuem iodo na sua composição e a fonte deste elemento é exclusivamente alimentar (CHASTAIN, PANCIERA, 1995).
Os hormônios tireoidianos são essenciais na regulação do metabolismo dos cães, pois participam da manutenção da temperatura corporal; do metabolismo das células no crescimento; regulam o metabolismo dos lipídios, proteínas e carboidratos; atuam na síntese de vitaminas; são importantes no desenvolvimento fetal; na formação das hemácias; na função cardiovascular; e, em filhotes, estimulam o desenvolvimento do sistema nervoso (DA CRUZ, MANOEL, 2015; FELDMAN, NELSON, 2004; GRECCO, STABENFELDT, 2004).
O hipotireoidismo é uma doença que resulta da produção insuficiente dos hormônios tireoidianos que acomete mais frequentemente cães de meia-idade, de ambos os sexos, embora não seja a enfermidade endócrina mais diagnosticada nesta espécie (DA CRUZ, MANOEL, 2015; FELDMAN, NELSON, 2004).
Levantamentos de centros médicos veterinários que atendem doenças endócrinas no Brasil mostram que o hipotireoidismo foi a terceira doença mais atendida em cães no Serviço de Endocrinologia do Hospital de Clínicas Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, enquanto o hipercortisolismo e o diabetes mellitus foram as endocrinopatias mais comuns (PÖPPL et al., 2016). Ainda, quando a obesidade foi contabilizada, o hipotireoidismo ficou em quarto lugar na rotina do Serviço de Endocrinologia do Hospital de Clínicas Veterinárias da Universidade Federal de Pelotas (DE LIMA et al., 2019).A principal causa de hipotireoidismo em cães está relacionada diretamente com a glândula tireoide. Os chamados distúrbios primários justificam 95% dos casos de hipotireoidismo canino e acontecem devido ao processo inflamatório imunomediado da tireoide, denominado tireoidite linfocítica (FELDMAN, NELSON, 2004; PANCIERA, PETERSON, BICHARD, 2000). Atrofia folicular idiopática, ou seja, sem causa conhecida, e neoplasias de tireoide também podem ser causas primárias de hipotireoidismo. O desenvolvimento da tireoidite linfocítica ainda não é bem compreendido e não se conhecem formas de prevenção (FELDMAN, NELSON, 2004). Na maioria dos casos, este processo somente é identificado quando o cão já manifesta sinais clínicos e exames sugestivos de hipotireoidismo. Outras formas desta endocrinopatia podem ocorrer, porém são bem menos frequentes que as causas primárias descritas. Alterações nas glândulas que comandam a tireoide, como o hipotálamo e a hipófise, são raras na casuística mundial (SHIEL et al., 2007).
A contribuição genética tem importância no hipotireoidismo, pois a doença é observada em algumas raças de cães com frequência, tais como Beagle, Borzói, Golden Retriever, Labrador Retriever e Cocker Spaniel (FELDMAN, NELSON, 2004; PANCIERA, PETERSON, BICHARD, 2000). Apesar de levantadas algumas hipóteses sobre a contribuição de fatores ambientais ou infecciosos na ocorrência de hipotireoidismo em cães, não foram encontradas evidências científicas que permitam alguma conclusão (FELDMAN, NELSON, 2004).
As manifestações clínicas do hipotireoidismo são inespecíficas (DA CRUZ, MANOEL, 2015; FELDMAN, NELSON, 2004). Cães hipotireoideos podem apresentar:
- Alterações em exames que refletem desequilíbrio metabólico (prostração, intolerância ao frio, ganho de peso, aumento de colesterol e/ ou de triglicérides)
- Sinais dermatológicos (falhas na pelagem, seborreia seca ou oleosa, hiperpigmentação, infecções bacterianas secundárias, otite externa)
- Sinais neurológicos (desequilíbrio, andar em círculos, confusão mental, crises epilépticas)
- Sinais oftálmicos (alterações na córnea)
- Sinais cardíacos (redução da frequência cardíaca)
- Sinais hematológicos (anemia)
Portanto, como o quadro clínico pode ser muito variável, o hipotireoidismo é investigado com frequência relativamente elevada em cães, o que pode resultar em um número também elevado de diagnósticos positivos sem que, de fato, o sejam. Ainda que não sejam as principais manifestações clínicas do hipotireoidismo canino, sinais relacionados ao sistema reprodutivo podem ser encontrados em cães com deficiência na produção hormonal tireoidiana (FELDMAN, NELSON, 2004; PANCIERA et al., 2012).
Nos caninos machos, são descritas redução da libido, redução na contagem de espermatozoides viáveis ou até mesmo a produção insuficiente destes gametas e atrofia testicular (SCOTT-MONCRIEFF, GUPTILL-YORAN, 2005). Nas fêmeas, observaram-se aumento do período entre estros, cios silenciosos, sangramento estral prolongado, produção láctea no período de anestro e aborto espontâneo (PANCIERA, 2001; SCOTT-MONCRIEFF, GUPTILL-YORAN, 2005). Impactos sobre as ninhadas também foram descritos, tais como filhotes com peso menor que o esperado ao nascimento e aumento das chances de óbito dos filhotes após o parto (PANCIERA, 2001; PANCIERA et al., 2012).
Um estudo avaliou os efeitos do hipotireoidismo no decorrer de um ano de doença induzida experimentalmente e permitiu conclusões importantes. Os autores concluíram que o hipotireoidismo interfere no peso da ninhada ao nascimento e na expectativa de vida, enquanto influências sobre a ovulação são pouco prováveis de ocorrer. Uma vez que cães de raça são frequentemente submetidos à criação, qualquer efeito do hipotireoidismo na reprodução, portanto, tem importância clínica (PANCIERA et al., 2012).
As evidências científicas demonstraram que algumas disfunções do hipotireoidismo sobre a reprodução de cães, mais especificamente relacionadas às fêmeas, podem ter melhora com o tratamento adequado (PANCIERA et al., 2012). Para que isso ocorra, o diagnóstico de hipotireoidismo deve ser estabelecido corretamente, uma vez que o tratamento de cães que não apresentam, de fato, a doença, pode promover a importante redução da função desta glândula (DIXON, REID, MOONEY, 1999) e comprometer a saúde geral destes indivíduos.
Diante do desafio que o hipotireoidismo canino representa com relação aos sinais clínicos e aos exames para o adequado diagnóstico, destaca-se a importância da avaliação médica periódica dos cães e, quando houver suspeita de disfunção tireoidiana, o planejamento diagnóstico deve ser elaborado da melhor forma a fim de reduzir os fatores que possam promover confusão na elucidação destes casos.
Material complementar
A PremieRpet® disponibiliza materiais de apoio ao atendimento, para uma avaliação clínica e nutricional completa do paciente, como a avaliação de Escore de Condição Corporal (ECC) e de Escore de Massa Muscular (EMM).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHASTAIN, C. B.; PANCIERA, D. L. Afecções hipotireoideas. In: ETTINGER, S. J.; FELDMAN, E. C. Tratado de Medicina Interna Veterinária. 4. ed. São Paulo: Manole, p. 2054-2072, 1995.
DA CRUZ, F. G. B.; MANOEL, F. M. T. Hipotireoidismo canino. In: JERICÓ, M. M., ANDRADE NETO, J. P. DE; KOGIKA, M. M. Tratado de Medicina Interna de Cães e Gatos. 1. ed., v. 2, Rio de Janeiro: Gen Roca, p. 1666-1676, 2015.
DE LIMA, C. M.; GRALA, C. X.; ESPINOSA, A. DE L.; FAGUNDES, B. D.; NOBRE, M. DE O.; RONDELLI, M. C. H. Serviço Especializado em Endocrinologia Veterinária na Promoção da Saúde de Animais de Estimação. In: VI Congresso de Extensão e Cultura. Anais da V SIIEPE UFPEL, Eletrônico. Pelotas: UFPEL, 2019.
DIXON, R. M.; REID, S. W. J.; MOONEY, C. T. Epidemiological, clinical, haematological and biochemical characteristics of canine hypothyroidism. The Veterinary Record, v. 145, p. 481-487, 1999
FELDMAN, E. C.; NELSON, R. W. Hypothyroidism. In: Canine and Feline Endocrinology and Reproduction. 3. ed. Philadelphia: Saunders, p. 86- 142, 2004.
GRECCO, D.; STABENFELDT, G. H. Glândulas endócrinas e suas funções. In: CUNNINGHAM, J. G. Tratado de Fisiologia Veterinária. 3. ed., Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, p. 350-357, 2004.
PANCIERA, D. L. Conditions associated with canine hypothyroidism. Veterinary Clinics of North America: Small Animal, v. 31, n. 5, p. 935-950, 2001.
PANCIERA, D. L.; PETERSON, M. E.; BICHARD, S. J. Diseases of the thyroid gland. In: BICHARD, S. J.; SHERDING, R. G. Saunder ́s Manual of Small Animal Practice. 2. ed., p. 235-242, 2000.
PANCIERA, D. L.; PURSWELL, B. J.; KOLSTER, K. A.; WERRE, S. R.; TROUT, S.W. Reproductive effects of prolonged experimentally induced hypothyroidism in bitches. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 26, p. 326–333, 2012.
PÖPPL, A. G.; COELHO, I. C.; SILVEIRA, C. A. DA; MORESCO, M. B.; CARVALHO, G. L. C. DE. Frequency of endocrinopathies and characteristics of affected dogs and cats in Southern Brazil (2004- 2014). Acta Scientiae Veterinariae, v.44, p. 1379, 2016.
SCOTT-MONCRIEFF, J. C. R.; GUPTILL-YORAN, L. Hypothyroidism. In: ETTINGER, S. J.; FELDMAN, E. C. Textbook of Veterinary Internal Medicine – diseases of dog and cat. 6. ed., Missouri: Elsevier-Saunders, v. 2, p. 1535-1544, 2005.
SHIEL, R. E.; ACKE, E.; PUGGIONI, A.; CASSIDY, J. C.; MOONEY, C. T. Tertiary hypothyroidism in a dog. Irish Veterinary Journal, v. 60, n. 2, p. 88-93, 2007.